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#SOA_023 | as camadas
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#SOA_023 | as camadas

como lidar com as mudanças, processos e o que a gente descobre ao tirar as tintas da parede
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Mudar em uma semana – é possível? Pois foi. E não é novidade a pressa, mas o que é novo é a necessidade de reestruturar prioridades. Estas últimas semanas me deixaram com a sensação de que fui atropelada por um caminhão. Na verdade, não só atropelada, mas também carregada por um caminhão – ou melhor, uma carrinha, como se diz aqui. Levaram-me de um lado para o outro da cidade de Lisboa, várias vezes. Carregada e repleta de mim mesma.

Mudei de todas as formas possíveis: de Uber, a pé, de van, no carro de amigos. Foi muita coisa. Mexer em tudo o que te acumula e são seus tentáculos em um território que não é seu é uma experiência intensa. E agora, já na casa nova, no domingo, olho para as paredes e vejo infiltrações. Elas revelam não apenas a idade da construção, mas também a absurda umidade que o inverno de Lisboa traz.

Sheyla Ayo - Sem título, 2018/2019 - Nanquim sobre tela. Foto: Reprodução

Há duas semanas que a chuva não dá trégua. Nas idas e vindas, as sacolas de roupa suja se acumulam e, no meio do caos, tentei montar um espacinho para o computador, mas... parada embaixo do teto que deveria proteger, vejo a água escorrendo pela parede. Os vidros da janela batem com força por causa dos ventos – barulho, cheiro, maturidade te chama e não adianta ignorar. Está tudo ali: a tinta velha estufada, a parede molhada, e eu, tentando organizar minha vida enquanto olho para essa cena.

Respirar fundo. Desmontar tudo. Aceitar: vai ter que resolver.

Ir lá e fazer.


Procrastinação ou aprendizado?

Ontem, uma amiga me perguntou se eu tinha “inventado” a obra na parede só para fugir de escrever a DGArtes. Nem consegui respondê-la diretamente – parecia que a pergunta pesava mais desta vez e como ela sempre acaba por me inspirar na vida e aqui: escrevo sobre e torno alguns processos públicos, porque o simples é, sim, complicado. Mas procrastinar não tem sido meu padrão. Meu desafio está no oposto: fazer tantas coisas ao mesmo tempo que me perco. Desta vez, no entanto, percebi: não adianta. Preciso voltar ao básico. E o básico começa pelo que aprendi – ser um animal: comer, dormir, beber água e ter um espaço seguro para existir.

E a parede vazando água, o rejunte do teto soltando areia, estavam me dando tudo, menos sensação de estabilidade. Sem paz, eu não quero mais ser capaz de produzir. Depois que conquistei um teto só meu, não quero abrir mão disso.

Larguei o computador. Tiramos tudo do quartinho, partiu linda e enorme lista de materiais e, pouco a pouco, mergulhei em vídeos de pedreiros no YouTube e comecei o trabalho. Quanta coisa útil temos quando democratizamos informações, não é mesmo?

Minha parede molhada começou a ganhar firmeza e estrutura para sustentar o nível de cabimento de vida que quero pertencer. Um grande: bora, time! Não adianta pintar tinta nova sobre a velha – o processo começa nas camadas invisíveis. E com coragem e, ainda assim, pressa, mãos literalmente à obra.

A obra, a poeira e as revelações

Toda mudança traz caos – e revelações.

Achei que esse processo fosse me deixar louca – e está, porém não só. Ele também está revelando novas camadas de flexibilidade. Vocês já viram a quantidade de tipos de rejunte e tinta branca que existem? Uma parede é história. E, quando você vai fundo, descobre o tijolo molhado – e as falhas que precisam ser corrigidas. Virei vidente de parede! E, entre camadas de tinta e poeira, percebi algo: o que importa não é só o trabalho em si, mas a reorganização que ele exige. Reorganizar é criar. A casa, a mente, o corpo – tudo é um quebra-cabeça que precisa ser remontado.

Inverno

As casas estão todas fechadas, e está todo mundo com crise alérgica. No meio disso, ainda tem a poeira da obra: lixar a parede, pintar a parede, lixar a parede, pintar a parede. E, enquanto isso, aqui dentro há um fervor produtivo que não condiz em nada com a loucura do outro lado do hemisfério, que agora esquenta na ebulição dos mergulhos noturnos e da revolução que chamamos de Carnaval. Nem lá, nem cá. Numvaievem. Preciso decidir que estou cá. Saí dos stories, silenciei os amigos carnavalescos e me realinho nessa missão eurocentrada: janeiro, o mês produtivo como nunca antes foi.

Sheyla Ayo - Sem título, 2018/2019 - Nanquim sobre tela. Foto: Reprodução

A obra, pois bem:

Vi uma quantidade absurda de vídeos no YouTube: como selar parede, como passar asfalto na parede, como varrer uma parede, como lixar uma parede, qual a melhor lixa... O apartamento que deixei foi entregue bem melhor do que o recebi – graças a 97% a mim mesma, e tenho orgulho disso. Agora, nos ciclos que vamos seguindo, uma vez entendendo o sentimento de ter uma parede bem pintada e a sensação de que não precisamos depender tanto de ninguém para fazer isso, não dar um passo atrás é o verdadeiro desafio.

A primeira coisa que tive que fazer foi arrancar a parede antiga, mofada. Confesso que nem sei se tive escolha. O incômodo do absurdo é tão grande que o mal feito não é mais sustentado.

E, sim, talvez Chaiana - eu - esteja meio louca de tanto falar disso aqui.

Marrr calma-te. O tahcram de passar quatro horas por dia olhando e melhorando o acabamento das paredes chega. E aí aparecem as camadas. A cor da parede era cinza e, a cada camada que fui tirando, dava para ver um histórico por trás daquela parede, até chegar quase no reboco, no tijolo molhado. Só que chove lá fora, e a umidade é absurda. Camadas de tinta: buchas, rosa, creme, branco, cimento. Quanta areia nas paredes, Portugal! Help-me!

A gente depende.

E, no meio disso, enquanto vou tirando as camadas da parede, lembro de todos os editais que tenho para fazer no próximo mês. A parede que comecei a arrumar é justamente onde será meu escritório, o cantinho onde vou colocar meu computador. A parede que vou pintar será o lugar onde pretendo pendurar meus post-its com todas as coisas que tenho para fazer. Pela primeira vez na vida, não mudei a prioridade: primeiro eu – quer dizer, minha parede. Preciso dela. Eu a fiz, quer dizer - estou fazendo. Todo dia, um pouco. Eu, as vozes dos meus projetos na cabeça - gritam até que mais calmas nesse novo hobby. (Leroy, me patrocina!) Cansei o corpo de uma tal forma - que até meu cérebro pareceu ter um pouco mais de paz, controverso e inesperado.

E a gente vai assim, por partes - aceitando as camadas do inesperado.

Quando você começa a escrever um projeto, você parte de uma ideia. Sempre há uma ideia geral: “Quero fazer um projeto sobre...”. E lá está a sua ideia. Mas, depois, a cada conversa sobre ela, a cada linha que coloca no papel, a cada pergunta absurda que lê em um edital ("objetivo geral, objetivo específico, justificativa, público-alvo..."), você percebe que precisa organizar melhor aquilo tudo. Precisa disso para colocar sua ideia no papel. Precisa disso para que alguém acredite em você, para que alguém te financie.

Sim, você precisa. Seja no mundo público ou no privado, no mercado ou em qualquer outro espaço, você precisa saber o porquê daquela ideia. Precisa conhecer, idealmente, todas as camadas que levaram até ela.

E não falo aqui das camadas psicológicas ou dos traumas que te levaram a fazer um projeto sobre a sua mãe – embora isso seja básico, clássico e cheio de referências. Tem uma infinidade de gente criando projetos sobre mãe e pai. Não à toa, Freud segue nosso rei.

Mas e qualquer outro projeto? Por exemplo: "Quero fazer um projeto em escolas." Por quê? Por que nas escolas e não nos hospitais? Por que nas escolas e não nos asilos? Por que nas escolas e não nas universidades? Por que nas escolas e não nas associações culturais do seu bairro?

Por que nas escolas e não em outro lugar? Pense em outras opções, em outros espaços que saiam do comum. Você tem ideia do quanto é difícil entrar numa escola sem nenhuma relação com ela? Por que seu projeto precisa ir a um lugar onde você não frequenta, não domina?

Se você tem filhos e vai à escola, ou trabalha em uma, tudo bem. Você tem uma relação mínima ali – pode falar com a diretora, com alguém. Mas, se aquele ambiente não é parte da sua vida, por que levar seu projeto até lá?

Você quer trabalhar com crianças? Há outros espaços com crianças.

Às vezes, é preciso pensar em caminhos mais simples para chegar ao resultado final.

Eu realmente sou do time – quem me conhece sabe – que acredita que não adianta pintar tinta nova sobre a velha. Camada sobre camada, mais cedo ou mais tarde, vai cair.

Os projetos nascem de desejos, anseios, expectativas. E isso demora. Dói. Tem cartomante, psicóloga, amiga, ligação com o passado, papel, post-it, desenhos. São muitas etapas para um projeto realmente dizer alguma coisa.

"Eu quero fazer isso porque vai ser bom pra humanidade."

Mas... que humanidade? Quem são esses humanos que vão se beneficiar disso? Tem certeza de que isso vai beneficiar alguém ou é só o seu ego?

E tudo bem se for só o ego. Não estou julgando. O ego é importante. A autoestima elevada dos seres humanos também é boa.

Basta mudar as pessoas para mudar o mundo.

E, se a gente começar um projeto que mude a você mesma, eu acho uma excelente justificativa. Veja eu, parando tudo para melhorar minha parede. Chega de aceitar mofos e infiltrações. Tem coisas que o outro não pode fazer por você – como reconfigurar o que é importante, o que te estrutura, o que é essencial.

Sheyla Ayo - Sem título, 2018/2019 - Nanquim sobre tela. Foto: Reprodução

Talvez o governo ou a instituição privada que vai te dar esse dinheiro não ache.

Cada edital tem os seus objetivos. Se você não sabe qual é o seu objetivo, vai buscar o objetivo do edital. Por que ele existe? Por onde sai o dinheiro daquele edital? E para que ele está aplicando? Quais são os objetivos que aquele dinheiro te dá?

Cada edital te diz, no regulamento, o porquê de ele existir. Leia essa parte primeiro. Depois, você respira e tenta conectar e justificar o seu projeto em relação àquilo.

Todo edital que é amplo nos objetivos são os piores de ganhar. Porque, geralmente, são os públicos de “queremos democratizar o acesso à cultura.” A gente sabe que deveria ser verdade, mas também sabe que é mentira.

O que geralmente os editais querem são pessoas capazes de lidar com dinheiro – seja ele público ou privado. Querem um impacto: algo que tenha capacidade de durar. Querem ações claras que fiquem nas instituições, que promovam a continuidade. Isso que mais vale.

Se isso não tiver claro, não adianta.

Quando olho para uma parede, penso: “Eu nunca tirei ou fiz uma massa com reboco, o que vou fazer?”

Eu busco vídeos de referência, leio textos, e até perguntei para o ChatGPT: “Como se diz reboco em Portugal? Como se chama rejunte em Portugal? Quais são as melhores marcas por aqui?” Porque é isso: não conheço.

E, quando se trata de um edital, fico triste porque você precisa ler outros projetos, analisar outras experiências, e até saber quem já ganhou aquele edital para perceber se você tem chance também.

Ou até para ver se o seu projeto está no lugar certo com a ideia certa.

A minha dica desta semana, no meio da minha obra e do caos, é: às vezes, você só consegue olhar para a parede. E, nesse momento, é o que dá. Semana que vem, realmente preciso voltar para tudo que deixei de lado, para me reorganizar.

A mudança é sempre um caos. Ela tira tudo do lugar. Mas, ao mesmo tempo, te força a reorganizar. Pegamos cada objeto, cada detalhe, e colocamos numa nova ordem. Um quebra-cabeça completamente redesenhado.

O meu quebra-cabeça tem sido tão intenso que está mexendo não só com geografias, mas também com sentimentos, com pessoas, com desejos. A pergunta que fica é: onde queremos colocar nossa energia de mudança e reconstrução?

Eu tive algumas ajudas para essa mudança que eu não esperava. Pessoas que apareceram e me ajudaram de formas que me emocionaram, e eu nem sei se serei capaz de agradecer. Mas também teve quem eu achei que estaria ali e não esteve.

A vida é assim. Quando começamos um projeto, imaginamos que temos uma equipe pronta para aquilo. Que nossos amigos vão ajudar. E, muitas vezes, eles não vão.

E isso não é maldade. As pessoas estão preocupadas com seus próprios dramas e caos.

A magia do 'estar pronto'

Lembre-se disso quando for escrever um projeto. A banca não quer saber exatamente o seu principal problema. Ela quer saber a sua magia para resolver e colocar o seu projeto de pé. Ninguém quer saber como eu trouxe minhas plantas de um lado para o outro. Todo mundo quer que elas estejam aqui, vivas e lindas. E, no final, todo mundo vai dizer: “Nossa, como ficou linda a sua casa nova.”

O processo de reorganizar as coisas não importa tanto para os outros. O que importa é a magia de ver tudo pronto.

E é exatamente isso que você deve transmitir ao escrever um edital. Coloque lá a magia. Mostre como o projeto será quando finalizado e como fará para chegar lá. A pessoa que lê precisa fechar os olhos e enxergar o que você vê – e acreditar que o orçamento e os recursos estão no lugar certo.

Sheyla Ayo - Lágrimas de mãe - Pintura sobre lenço (2018)

A metáfora da obra parece simples, e é. Mas projetos funcionam assim também. Tem coisas que só estão na sua cabeça. Quando você diz: “Nossa, esse sofá vai ficar lindo naquele canto,” você já mediu? Já sabe se ele passa pela porta? E, se não passar, qual é o seu plano B? Tem um plano C? Está disposto a desapegar se o sofá não couber? Vai deixar o sofá na rua? Vai ligar para alguém para buscá-lo? Você tem para quem pedir ajuda? Seu projeto precisa ser mais do que uma ideia – ele precisa de estrutura para existir.

Por isso, aqui vai a dica da semana: Preveja imprevistos!

Reserve tempo para organizar seu espaço – físico, mental e financeiro. Tenha um plano A, B e C. E, mais importante, mantenha a capacidade de sonhar, mesmo na bagunça.

As camadas de um projeto (ou da vida) se revelam aos poucos, e é preciso enfrentar a bagunça, a umidade, o caos e a poeira para criar algo com estrutura real – algo que não se abale no primeiro chovisco de dúvidas.

Projeto é como obra: Nunca sabemos quantas camadas serão necessárias para chegar ao ponto final. Quando você escreveu a ideia inicial, estava sozinho. Depois, ao compartilhar com outras pessoas, ouviu delas se fazia sentido ou não.

No orçamento, chamamos isso de “taxa de imprevistos.” Sempre reserve 10% ou mais para o inesperado. “Mas meu orçamento é de apenas €1.000!” Não importa! Você ainda precisa de uma margem para ajustes, porque a vida sempre traz imprevistos.

E mesmo quem tem muita experiência sabe: cada projeto é único. “Não existem regras prontas para criar filhos”. Uma coisa temos todos certeza: obra sempre dura mais do que o previsto, e projeto cultural também – nunca todas as camadas, questões e problemas estão ali, aparentes. Você tem que deixar chover para perceber onde estão os furos do teto. Então atenção ai na sua calendarização e orçamento - lembra de colocar os imprevistos! <3

Música para finaliza que veio tosacamente gritando na mente foi: Deixa chovvverrr ooouu ouuu ouuu deixa a chuva molhaarrr 🎶

Até semana que vem,

Com carinho e energia,
Chaiana Furtado 💜
#FocaNaLuz ✨

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