Pelo direito ao desespero, reescrevi essa carta cinco vezes. Fiz outras no meio do caminho. Todas boas, sinceramente.
Mas hoje... o que eu quero dizer hoje? Mais do que "o que você quer ouvir" — e nem sei exatamente quem é esse "você" — eu me pergunto: o que eu quero expressar hoje?
A discussão do apagão, claro, tem mil dimensões. Mas o que eu escolho hoje é o direito ao desespero.
Fui interpelada por dois amigos, superinteligentes, no grupo de WhatsApp da galera do colégio. Um está no Brasil. O outro, na França.
E assim — não foram diretamente abalados pelo apagão de ontem. Sabem tudo sobre redes elétricas europeias e choques de realidade que envolvem dimensões geopolíticas. Literalmente, essas pessoas trabalham com isso. Um deles já “viveu” um atentado terrorista. Estava lá quando estouraram as bombas em Paris. E agora estão relativizando o pânico que amigas minhas viveram aqui, em Portugal. “Não foi para tanto.”
Isso me incomodou, porque eu, euzinha, não entrei em pânico. Estava no mais alto grau do privilégio.
Mas vi quem entrou. Amigas, mães solo, com filhas pequenas. Uma foi buscar a filha na escola só para garantir que estava tudo bem. Sem notícia. Sem internet.
O que você fez no apagão? Eu? Apontei meus lápis.
✦ Apagões: Metáforas e Realidade
A gente tem direito ao desespero.
Sem cair na burrice do elitismo reverso do “mas você não lê as notícias?”, “guerra em Portugal? ha, ha, ha que piada!” ou “você não conhece as redes europeias, como funciona a eletricidade...”
Não, não tenho a menor puta ideia que Portugal tinha privatizado tudo e entregue a soberania energética a outro país.
Mano, sinceramente, não é sobre isso.
O desespero é desesperador justamente porque não é racional. É físico. É sensorial. É coletivo.
E quem é que vai te dar a mão quando essa realidade se impõe?
Papo de política internacional?
Ou as fake news e os memes que abraçam seus medos, colocam no colo e te dão de ninar?
Ontem, foram 5 horas sem internet. 10 horas sem luz.
Nenhuma previsão. Nenhuma comunicação oficial confiável.
O governo mandou SMS às 8 da noite — a luz tinha acabado desde 11h30 da manhã! Sério.
E aí?
Como disseram na Espanha: “Se forem três dias sem comida, você tem o suficiente?”
Estocar comida? Comer tudo da geladeira? Vai estragar?
Ninguém sabia.
Ninguém sabia.






✦ O Julgamento da Dor
“Você é brasileira, já viveu outros apagões, medos maiores.”
Que audácia cruel é a comparação — ter que estar sempre preparada e nunca se acostumar com a leveza. Cada dia, um “deu mole” diferente. Cada dia, um "foi assaltada? a culpa é sua", "não posso me preocupar com isso porque tá morrendo gente em Gaza." Tanta discussão sobre isso…
Nenhum apagão meu anterior foi esse.
Cada medo tem seu idioma, seu dia, seu ciclo.
Naquele, eu tinha medo de estupro, de assalto, tava no Rio de Janeiro.
Aqui, o medo de fato seja eridículo e o próprio medo é o do ridículo.
Do medo europeu privilegiado. Medo de faltar comida. Água. E só.
Eu sinceramente enchi duas garrafas de água de 2L. Vi que tinha frutas. Pensei: hum, fruta, biscoito e água. Dá pra ficar dois, três dias - deboas como agumas fake news disseram. Ok, sobrevivo.
E eu nem tenho filhos. Eu tava pensando nos filhos dos outros.
Nas mães. Nas amigas. Naquela rede de extensão familiar que buscou o filho da outra amiga na escola. Porque... gasolina? Quem anda com o carro cheio de combustível pra “caso o mundo acabe”?
✦ Viver de Arte é um Desespero?
E quando isso acontece — você não sabe o que fazer.
Viver de arte, hoje, é isso também:
um desespero, um não saber o que fazer constante.
Pular do abismo. E não saber o que tem embaixo.
E eu quero resgatar o meu direito de ficar desesperada por causa disso também.
Direito de ficar ansiosa.
Direito de não ser julgada por isso.
E se eu for, que claro que em alguma instancia, seremos, mas que não sejam pelos meus amigos.
Porque ser quem somos com as nossas angústias é um belo divisor de amizade — e de quem queremos perto em qualquer tipo de terremoto, real ou imaginário.
✦ Peças do Cotidiano como Sobrevivência
O pânico do outro é sempre tratado como "exagero".
Compartilhei fake news da CNN.
Errei. Estava em inglês.
Então, claro, colonizada até pras fake news que sou, soou verdadeiro in english.
E uma amiga, ainda no grupo, falou:
“É tão fácil dizer que não era pra tanto... depois que passa.”
É igual quando dizem:
“Ah, mas tua exposição foi um sucesso.”
“Ah, mas teu filme é ótimo.”
Não precisava ter ficado tão angustiada.
([inserir aqui seu sticker de cara de palhaça e sorrisinho infantil de "tá bem então"])
Porque claro, pouca gente ou quase ninguém quer saber do processo. Ele realmente so interessa a voce. a glaera quer saber do resultado - ta lindo, ta feliz, ta viva, nao tem o que reclamar.
A pessoa lançou um “lágrimas brancas, sempre mais ouvidas”.
Porque tudo que acontece na Europa ganha outras proporções.
Não tá errada.
Mas... quando foi que viramos quem julga a dor que o outro pode ou não sentir?

✦ Desespero também pode ser estratégia — ferramenta e o coletivo.
Foi o desespero que me fez lembrar do rádio a pilha. Do dinheiro físico, da churrasqueira e das lanternas de acampamento. Ontem, eu tinha só uma nota de 20 euros — mas que me deixou em paz.
E se não tivesse? Tudo era virtual. Dinheiro virou tão virtual quanto as nossas emoções. Sistema bancário? Parado.
Big tech controla tudo: parada.
Então sim, amor:
Bota dinheiro no colchão.
Compre um rádio a pilha.
Deixa fruta em casa.
Tenha lanterna, velas, isqueiro e fósforo.
Igualzinho os anos 90 no Brasil.
Vela e fósforos espalhado por todos os cômodos.
Seja terremoto, guerra ou um grande nada, só o desespero pelo ato de se desesperar.
Eu, Chaiana, liberto você a ser desesperada como eu.
Tcharam!
E sofrermos as nossas dores, sejam elas quais forem.
✦ Derramamentos e inúteis sobrevivências
E que cada um se proteja com o que sabe, com o que tem.
Seja contra o fim do mundo — ou contra as pequenas mazelas de viver num mundo escroto.
Eu dei uma de Capicua ontem e fui tomar “um gelado antes do fim do mundo”.
Especialmente pra quem pode escolher viver de arte e fica ainda na angústia diária:
“Quem é você pra viver de arte?”
“Quem é você pra não querer contrato de trabalho?”
Pois é.
A gente vive relativizando tudo.
Inclusive o nosso próprio medo.
Inclusive as nossas próprias escolhas.
✦ Quando serei eu?
E aí, ao invés de responder no grupo, vim escrever.
É isso que me salva.
A escrita me salva.
Porque tem conversas que nos aplicativos não se sustenta.
Relativizar tudo que sentimos é a maior violência que podemos fazer com a gente.
Ontem, no apagão, a ordem das prioridades se instaurou:
Trabalho: último da fila.
Amores. Crianças. Pânico. Comida. Água.
Onde está meu amor? Chegou. Pronto. Alívio.
Livro.
Vou ler.
O que me conecta com paz? Livro.
O que me dá renovação em mim? Poesia.
Li tanto, rabisquei tanto meus livros com lápis de cor recém-apontados — coisa que não fazia há anos.
Colorir palavras.
("Vai estragar o livro, menina! Que horror!" Jamais pintaria meus livros, mas que bom que esses são os meus! ;)
Ai, os julgamentos...
Salvem-se quem puder.
✦ Poetas, limões e eletricidade
Tinha deixado anotado para escrever sobre um podcast que escutei na semana sobre o homenageado da FLIP deste ano: Paulo Leminski.
Poesia, ele dizia, está na música, na rua, na feira.
Não consegui desenvolver, por ter mudado toda a cartinha em cima da hora, mas vou deixar aqui, pois ainda assim dá liga o poema no podcast, que referência ao trabalho genial da Bruna Beber:
Limão
Se a vida te der, agradeça.
Bruna Beber - Sal de Frutas
“Nesse mapa de frutas, a carioca Bruna Beber dedica um poema para cada fruta, como se caminhasse por uma feira ou pelos lugares da memória onde elas habitam.”
Você com seu limão: faz caiprinha, limonada, ou nada. é bom ter o limão.
Que nossos egoísmos criativos sejam respeitados.
Que nosso direito ao desespero íntimo não seja confiscado.
Se for pra ruir, que a gente ruja, escreva, desenhe, grite e não se reprima.
Se o fim do mundo chegar, eu estarei escrevendo.
E tomando um gelado.
Bem longe das “tretas” de WhatsApp. Eu sei onde pelo menos eu quero estar.
Quem fortalece nossas loucuras e não as menospreza é quem vale lutar no apocalipse zumbi do lado.
No mais, obrigada por me lerem e chegarem até aqui.
Aceito sugestões, inspirações e divagâncias coletivas.
Com carinho e energia,
Chaiana Furtado 💜
Beijos de #FocanaLuz ✨
☂️ S.O.S da semana:
📖 Livro: “Sal de Frutas - Bruna Beber “
🎧 Podcast: Paulo Leminski na Flip 2025 - Ana Lima Cecilio [451MHz]
🎶 Para ver/ouvir: O disco da Capicua - Um gelado antes do fim do mundo - “nada mais triste do que quando morre um poeta” - na música Ao Acaso
💡 Frase da semana: "Você aprende a fazer seu trabalho… fazendo seu trabalho."
🎒 Funciona pra mim — será que funciona para você também?
Aqui que pediram dicas de organização e criatividade?
Lutei para abrir essa janelinha na carta da semana — porque fazer isso através de profundezas é sempre a proposta do SOA.
Mas percebi que, às vezes, para mergulhar ou emergir, precisamos de ferramentas.
Coletes para nos apoiar na imensidão marítima. Listas salvadoras
E aí, pensando no apagão eu fiquei: será que as pessoas acumulam cadernos em branco como eu?
Esse tem sido um exercício constante — desde agendas anuais da infância até hoje, com cadernos bonitos, sem linhas.
Sim, faço questão que sejam bonitos.
São minhas frutas: olho, degusto a capa, a textura, as cores, a grossura das folhas.
Comprem cadernos bonitos.
Canetas boas de escrever.
Lápis coloridos gostosos de comer.
Cerquem-se de vocês mesmas — através de materiais que seus corpos reconheçam como extensão de ideias. Assim como buscamos alimentos na feira, busquemos novos papeis para a gente se derramar.
Tenha recursos para se derramar — com ou sem luz. Com ou sem internet.
Derramamentos não precisam de explicação.
✅ Funciona pra mim: caderno bonito, lápis coloridos apontados bonitamente, caneta boa.
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