Precisei de tempo. Me julguei por isso.
Fiquei muito, muito feliz por todo mundo que me mandou mensagem sentindo falta do SOA. Foram 31 semanas sem parar. Sem perceber / me censurei / parei.
Muitos escritores, muitos criadores, já tinham falado da autocensura. Dos livros. Dos temas. Das vozes que chegam devagar e dizem: “cuidado com o que você escreve”. Eu achava que era a voz da responsabilidade. Não da censura. Muito menos pensei que essa voz ia, de alguma forma, me paralisar.
Pois bem.
Censura ou responsabilidade?
Literalmente o que move o SOA é um diálogo honesto sobre as profundezas — tanto burocráticas quanto criativas e artísticas. Esse projeto é sobre escavar o que há por baixo.
E aqui está uma tentativa de voltar, tentando. Gerúndio mesmo. Porque tentar diminuir a censura — interna e externa — é um trabalho contínuo. Não me julgar. Voltar ao porquê esse projeto foi criadonão se render às exigências externas é muito sufocante. Adaptar o que se quer à vontade do outro — de um edital, de uma burocracia, de uma moldura — pode até economizar tempo no agora. Mas, no fim das contas, eu não aceito mais isso. E talvez, por não aceitar, eu tenha paralisado. Não acredito que foi uma paralisia congelante. Mas sei que escutei a voz do medo. Mais alta.

Burocracias que nos atravessam
As vozes externas estavam gritando. Me interrogando. E eu me deixei interrogar também pelas perguntas que vivem no desconhecido em mim. Aquelas que a gente tenta calar, mas que vêm trabalhar a gente por dentro.
É isso que é viver em processo: estar sempre investigando o próprio desejo. É duro. Porque nossos recursos são limitados. Energia e tempo, principalmente. E esse tempo… era o recurso que mais me faltava. Precisei de tempo no agora.
Não sei se alguém reparou que ficamos duas semanas sem newsletter. Mas antes disso, foram 31 semanas seguidas. Indo pro Brasil. Voltando. Mudando de emprego. Mudando de casa. Atravessando DGArtes. Conversando coisas novas. Passando por muitas mudanças.
A pior mudança foi me perceber parando. Mais do que parar de escrever — foi não ter mais vontade de compartilhar os processos. Isso me entristeceu profundamente.
Negativas que doem
Mesmo parada, não fiquei estagnada. Eu filmei meu primeiro filme em Portugal. Um motivo de celebração, claro. Mas também foi a semana em que fui barrada numa festa. Uma festa em que eu me arrumei, tomei banho, me preparei pra ir. E não entrei. Foi também a semana em que a DGArtes não aceitou nosso projeto do SOA. Disseram que não temos historial suficiente no campo das artes. E então… passamos dias em consultorias. Um domingo inteiro longe da família, da praia, dos amigos. Revisando cada documento. Cada palavra do recurso, com vontade real de falar: foda-seeee!!!! Não quero vocês! Vai acontecer sem vocês! Mas a verdade… é que não vai. Não podemos continuar só com raiva. Valorizamos o trabalho dos técnicos. Mas um “não admitido” vem como uma faca no peito. Destroça a esperança construída com parceiros, com sonhos, com tempo. E o que dói mais: nem seremos avaliadas por um júri especializado?
Triste. Mas foi isso. Aconteceu.
Consultamos, dialogamos, recorremos a amigos - aprender, resistir, ver onde errou, onde foi o mal entendido - queremos ser compreendidos em todas as esferas. Então a esfera pública de políticas culturais é importante. Escrever, receber feedback e seguirmos - mas cansa. Destroi.

Arte como cura e caminho
Passei dias depois desse e-mail de “não admissão” meio deslizada olhando pra parede — me perguntando: é assim mesmo que escolhi viver minha vida? Na dependência de editais públicos?
Por aqui nós tínhamos poucos mas alguns assinantes pagos aqui que pararam de pagar. Alguns leitores gratuitos foram embora. E isso me afetou. Não é um descontentamento do agora. É um descontentamento energético de futuro.
Eu estou feliz com o presente. Com tudo que já construímos. Mas fico repensando o tempo inteiro: onde é que a gente quer chegar? E para mim a pergunta mais dolorida é: podemos chegar lá?
Não quero voar — sabendo que é impossível, entendem? Eu quero voar de avião, de asa-delta. Quero voar com o que já se tem de possível, com ferramentas e instrumentos já criados. Eu não quero reinventar achando que vou criar asas. A queda livre de um corpo em precipício em nome da arte — isso eu não quero mais fazer.
Eu não recomendo, não aconselho. E esse projeto do SOA nasce daí: de usar as ferramentas que se tem, pra que a gente não precise se jogar em queda livre.
Fechados
As portas que dizem “não” são como a da festa que fui barrada. Não era meu encaixe? Não era pra mim? Não sou “hipster enough”? “Queer enough”? “Imigrante enough”? “Artista enough”? — julgamentos pelo que se mostra — seja a roupa cool ou as palavras escritas e quadradinhos marcados errados. A gente nunca tem plena certeza se a porta não é nossa, se estamos batendo na porta errada ou se existe uma porta que a gente tem que bater.
Mas às vezes não são portas, são buracos na terra pra cavar, que nem tatu. É pesado mesmo ser barrada no baile — alguns desses “nãos” vão te impedindo de continuar e ter esperança de se divertir dentro de uma festa que você só vai para dançar. Às vezes, no pensamento mais coach, o “não” fortalece. Mas outras vezes… é estrutural. Ele diz: você não tem estrutura.
E aí eu penso: eu nunca vou ter. Nunca vou nascer de novo. Nunca vou nascer portuguesa, artista, herdeira — ter os livros lidos, os códigos, os conceitos. Nunca vou nascer dentro do que se espera.
Como você muda todo um conceito?
E aí… tem o David Amado.
Eu não o conheço pessoalmente, mas admiro profundamente. Acompanho a luta dele de estar tentando mudar as regras do ICA, e falo: caceta, de onde essa pessoa tira força pra estar lutando essa luta com tanta intensidade? Eu não sei se sou tão corajosa. Mas… será que ele tem escolha? Será que um artista tem opção de querer fazer arte no país que escolheu viver? Temos nós?

Trabalho x desejo
Eu não quero uma vida 100% pontuada pelo trabalho. E essa é uma das maiores dificuldades de quem trabalha com arte: onde é o linar de onde termina o desejo e começa o trabalho? Onde termina a paixão e começa o edital?
Pra mim, o desafio é esse: manter o desejo. Fazer com que ele seja coletivo. Apesar de ser difícil lidar com ser humano. Gente diversa. Complexa. Astrologicamente confusa. É dificil ter parceria, mas é muito, muito pior mesmo é fazer tudo sozinha.
Então que a gente possa melhorar a burocracia. Melhorar os sistemas. Porque nada, absolutamente nada, veio sem a violência da resistência. Os mecanismos de fomento existem — e isso já é algo.
Recorrer e resistir
Me disseram: “vai na Loja Lisboa, eles têm consultoria gratuita”. E eu fui. Marquei. Fui acolhida. E pensei: é preciso aprender os caminhos, usá-los e compartilhá-los.
Outros caminhos, como o de David, precisam ser abertos — porque ainda não existem. Mas outros já existem. E precisam ser fortalecidos.
A maior força veio de perceber que nossa não admissão não foi a única. Foi uma leva. Uma crescente. Eliminações antes da linha de chegada. Como não fazer artistas e coletivos perderem tanto tempo escrevendo? Talvez seja como uma maratona pedindo exame de coração antes de deixar alguém correr.

Arte e políticas públicas não são campos óbvios.
O mercado criativo é vivo, dinâmico. A indústria cultural muda o tempo inteiro. Novas mídias. Inteligência artificial. Discussões aceleradas como um carro de Fórmula 1. E a gente não é o Ayrton Senna. Cada um com sua velocidade. Suas forças. Seus limites. Seus privilégios — e a falta deles. E de vez em quando precisamos de tempo.
As recusas não dizem quem você é. Dizem onde ainda não chegamos como sociedade.
Para não nos perdemos do círculo
Pra ganhar força, fui ao teatro. Ver filme bobo. Coisas que me deixassem não entender tudo. Às vezes, repensar a vida é justamente não pensar.
E fui arrebatada. Por Cafézinho, da Gaya de Medeiros. Por Úlulu, da Raquel Lima. Coletivos no palco. A narrativa da construção, uma força de rede — ninguém estava ali sozinha.
Me reconectei com o íntimo desejo de construção de fé — de alucinação — que faz produtores, dançarinas, atrizes atravessarem os descontentamentos de fora e de dentro. O tipo de força que atravessa — e lembra por que começamos tudo isso.
Gaya me fez mergulhar em prantos profundos.
E me perguntei: quando foi que eu parei de cantar minha própria existência?
Círculo de força
E isso que a gente faz - recupera forças na fonte - nas outras artes - em outras artistas - nos amigos - na família - no travesseiro - esse é o verdadeiro repertório que não podemos abandonar, os que nos constituem - nossas histórias de vó - nossas.
E a última gota de força de não desistir de mandar um pedido formal de revisão da decisão foi escutar Nego Bispo - para relembrar algumas essências do caminho de quem tenta ser “começo, meio, começo” - como já o citei por aqui.
Quem pensa de forma linear, chega ao fim. Nós somos espiral circulares. Quando entramos e saímos estamos sempre conectados - nunca no início - nem no fim. Aconselho a deixarem seus post-its perto de ti, pois a programação cultural que você sonha hoje… é o alimento de alguém amanhã - assim fazemos girar o círculo.
Obrigada pelas mensagens. Pelo carinho. Pelas dúvidas compartilhadas. Por me lembrar que existe menos solidão nesse processo. É cansativo, mas temos que garantir esse espaço.
Cuidar da própria força é o ato mais radical de um artista.
Então, se você está passando por algo parecido e quiser, puder e tenha recurso: Recorra. Reúna elementos. Por lei. Por democracia. Pela sua querência. Releia o regulamento. Peça ajuda. Apresente cartas de mérito. Alegue lapso. Admita falhas. Corrija.Temos o direito — e a beleza — de recorrer. Por tudo precisamos ter nossos projetos AVALIADOS - mesmo que sejam o primeiro - não tem critério de artistas iniciantes - ou quão grande e relevante há de ser seu historial para avaliares seus projetos a serem admitidos. Se sua burocracia formal estiver regularizada, apele sim.
Como Gaya me reavivou um Arlindo Cruz vibrante de alma e som:
“Mas iremos achar o tom Um acorde com um lindo som E fazer com que fique bom Outra vez, o nosso cantar E a gente vai ser feliz Olha nós outra vez no ar O Show Tem Que Continuar”
Composição: Arlindo Cruz / Luiz Carlos Da Vila / Sombrinha
Se você chegou até aqui, aproveita e escuta a música na voz de Beth Carvaho e muito obrigada pela leitura.
“A vasilha de dar é a mesma de receber” (Bispo, Nego) sigamos dando <3
Aceito sugestões, inspirações e divagâncias coletivas.
Com carinho e energia,
Chaiana Furtado 💜
Beijos de #FocanaLuz ✨
☂️ S.O.S da semana:
Referências culturais citadas para estudar, sentir e se inspirar:
🎭 Ver: Úlulu, de Raquel Lima | Cafézinho, de Gaya de Medeiros
📚 Ler: Quando mergulhamos no trabalho da Mamela Nyamza: [ #SOA_014 | eu acredito em mim ]
🎧 Ouvir: Nego Bispo na Feira do Livro — [episódio da 451MHz]
🧾 Burocracias e Caminhos
Dica prática da semana:
onde buscar apoio gratuito em processos culturais? A Loja Lisboa oferece consultoria especializada — acolhedora, gratuita e eficiente.
Se você está em Portugal, vale marcar uma conversa. Eles ajudam na leitura e na formatação de propostas. Acesse o [link] e conheça:
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