A regra é clara: quem narra sua própria história, ganha lugar no mapa-múndi.
Tesla, terninho e a microviolência:
o subtítulo dessa newsletter não é aleatório. Ele é resultado de camadas da minha última semana.
Vi uma mulher de terninho subir num Uber-Tesla aqui em Lisboa, ali perto da PUC, e aquilo me deu um gatilho que ainda não sei bem se é só um flashback ou um tipo de premonição. Um símbolo do sonho neoliberal, da performance do sucesso e do apagamento dos afetos.
Me lembrou das meninas da minha PUC, lá do Rio de Janeiro nos anos 2000, do meu tempo de aluna recém-saída de escola pública, tentando parecer que não era. Tentando caber na faculdade privada mais cara do país.
Tentando não mostrar vergonha. Eu mostrava raiva.
Hoje, artista, produtora, imigrante, sigo tentando caber em luguares que não necessariamente me cabem como editais, tentando demonstrar relevância no vocabulário das métricas, tentando traduzir afeto em excel.
E não, nunca usei terninho, pelo menos até hoje.
Não por não querer, talvez, mas esse código não é para qualquer uma.
Não precisei ainda, talvez, projetar minha imagem nesses supostos espaços de “poder feminino” e “empoderamento” (sic).
Desconfie dos terninhos “masculinos”. Porque há violência até no que parece sucesso.
✦ Política cultural e geopolítica da arte
(Cuba, Brasil, Portugal — cultura como sobrevivência)
Quando Fidel venceu a revolução, uma das primeiras coisas que fez foi construir uma escola de cinema. Descobri a EICTV aos 14 anos. Aos 26, consegui ir. Com o dinheiro que o próprio cinema, meu trabalho, me deu. E eu sou muito orgulhosa disso. Larguei tudo por um tempo e fui sonhar cinema. Era mesmo tudo um sonho. Quem não conhece, recomendo.
Logo após a revolução, o governo de Castro entendeu o cinema como uma ferramenta de educação, mobilização e transformação social.
Estavam em disputa direta com o gigante narrativo chamado Estados Unidos.
Em 1959, foi criado o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC)1 para fomentar a produção nacional.
O ICAIC não apenas impulsionou o cinema cubano, como também articulou colaborações com outros países da América Latina, promovendo um audiovisual que dialogava com realidades regionais, ignoradas pelo cinema importado.2
Bonito, né? Ver cultura como arma revolucionária.
Parece raro hoje em dia, mas não é.
Talvez só não esteja sob os faróis que os Teslas tentam nos vender.
✦ Cinema, Cartografia e Poder
Como primeira instituição cultural da revolução, o ICAIC foi também espaço de debate sobre política cultural.
A escola de cinema, como uma ilha dentro da ilha. A utopia da imaginação.
A Revolução Cubana não impactou apenas a geopolítica da América Latina, ela reconfigurou também a produção cinematográfica do continente.
O cinema passou a ser entendido como quem traça mapas afetivos e visuais do seu povo.
Se você nunca viu um filme cubano, pense no porquê.
Além de serem obras potentes em linguagem, Cuba ainda sedia um dos maiores festivais de cinema do mundo: o Festival de Havana.
Voltado não só, mas também ao público comum, para os cubanos.
Sem luxuosos tapetes vermelhos, sem dress code de gala, sem tanto verniz, muito cinema em salas que cabem mais de mil pessoas. E lotam.
Quem não tem cultura, não está no mapa.
Quem não sabe exportar suas histórias, também não.
Geografia cultural.
Cartografia emocional.
Geopolítica.
Chame como quiser.
Mas o nome disso também é poder.
✦ Inserção cultural: Brasil e Portugal
A indústria cultural, que em muitos países nem indústria é,segue colonizada.
Ou você cria seus próprios produtos e narrativas,
ou vê um Tesla virar Uber3 pelas ruas
sem se perguntar: como é que um trabalhador dirige um carro de luxo?
Que lógica é essa?
Que fantasia neoliberal, embalada em “sustentabilidade”, se vendeu como normal?
Nunca te pareceu estranho?
Estratégia de marca.
Incentivo estatal.
Discurso bem treinado.
Tudo junto, embalado em performance de futuro.
Um futuro, aliás, onde eu sou obrigada a escutar as birras de dois machos bilionários4 brigando em suas redes sociais, enquanto o dólar oscila no mundo real.
Parabéns a todos os envolvidos.
Meus anos na faculdade de Geografia não me fizeram expert (claramente, hahaha) mas deixaram rastros.
Ainda que eu tenha reprovado em ‘quase’ todas as matérias de Geografia Física [inserir cara de palhaça], ficou o amor desse ponto de vista de observar o mundo.
Um amor por entender por que as coisas estão onde estão.
A Geografia estuda a organização do espaço e, por tabela, quem ocupa o quê, com qual direito e com qual permissão.
Cartografia criativa.
Elipses do cinema.
Planos-sequência que vamos dando vida:
tudo tentando responder essa pergunta básica:
Por que isso está aqui e não em outro lugar? (inclusive eu, o que eu to fazendo aqui em Lisbolha? ;)
Portugal, esse novo lugar onde tento viver, revela novas formas de organização.
E, para olhos de artista e imigrante, esse mapa é um caos.
Um caos com muitas camadas, onde cultura ainda parece viver no rodapé das prioridades.
Se isso fosse um artigo de doutorado, eu até citaria alguém importante só pra dizer o que eu quero, que:
a cultura é, sim, uma forma de habitar o território.
(e cá está a missão do SOA ;)
E quando eu vejo o caos, às vezes penso:
“Talvez não seja comigo.”
Mas é.
Sempre é.
Principalmente quando políticas migratórias ou culturais me atravessam direto na testa (ou no Tesla! há!)
✦ Experiências pessoais e estruturais
Veio a notícia: o Ministério da Cultura em Portugal foi extinto como pasta autônoma.5
Fundido com Desporto e Juventude.
E, claro, né?
Na mesma noite, sonhei que enterrava meus amigos artistas portugueses.
Eu ia ao velório, chorava.
Hoje penso: por que eu os enterrava e não estava junto?
Quando morre a cultura num país, morre o país.
Morre o imaginário, morre o pensamento crítico, morre a possibilidade de existir para além da produtividade.
E eu sou imigrante.
Escolhi ficar.
É como ganhar uma irmã mais nova:
só eu posso brigar com ela.
Ninguém de fora pode falar mal.
Ou só quem está aqui… sabe. ;)
Aprendo com a cultura a história do país que habito e com os que gentilmente trocam comigo.
Me dói ver os artistas portugueses cansados, sem horizonte.
Me dói ver os brasileiros chegando na porrada, tentando se encaixar, traduzir, suportar. E é isso que torna tudo mais íntimo. Mais cortante.
Ao mesmo tempo, estamos aqui. E não só nós dois no caso, os PT e BR, mas tem um grande coletivo diverso que dá brilho a esse nacional:
fazendo, errando, refazendo, querendo construir
juntas, juntos, juntes.
Contar a própria história, nesse contexto, não é vaidade:
é ferramenta.
é mapa.
é uma forma de ancorar a existência no meio do furacão.
é estratégia geopolítica.
e, para muitos, é o único recurso. é a única forma de permanecer a esse território.
Muita gente que me lê constrói essa travessia na unha.
Na força da ideia, da ralação, da conta bancária quase sempre bem negativa, dos recursos psicológicos quase sempre no limite.
E, mesmo assim, cria.
Mesmo assim, tenta.
Mesmo assim, segue.
Porque se há algo que a gente aprende é que, enquanto não houver estrutura,
a gente vira a estrutura um do outro.
E não, isso não é mensagem positiva.
É uma merda.
Queremos e precisamos de estrutura estatal, plano político, ação de governo.
Não me venha com esse tom de Dia das Mães e povo guerreiro da arte. Tá bem?
✦ Instituições culturais e as disputas invisíveis
(Cuba, Brasil, Portugal: a política por trás das câmeras)
Seguindo essa trilha continental, fui revisitar a história das políticas culturais que moldaram o que vemos (ou não vemos) no cinema, na TV, nas telas do mundo.
Em Cuba fundar o ICAIC não era “só cinema”.
Era soberania.
O ICAIC organizou oficinas, formou roteiristas, produziu filmes e, mais que tudo:
gerou imaginário nacional.
criou espelho para o povo se ver.
e pra contar para o mundo que Cuba existia.
(E a mesma estratégia que os artistas de Porto Rico seguem brilhantemente fazendo.)
No Brasil, a Embrafilme6 foi fundada em 1969, plena ditadura, com essa mesma intenção: centralizar a produção audiovisual.
Foi desmantelada nos anos 90.
Só em 2001, com a criação da ANCINE7, começamos de novo a articular uma política pública para o setor.
Em Portugal, o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA)8 como conhecemos hoje foi consolidado em 1998, a partir de reformas e fusões.
Mesmo com estrutura pequena, manteve alguma regularidade em fomento. Bom, até agora.
Porque, como vocês sabem:
o Ministério da Cultura foi absorvido por Desporto e Juventude.
E não é coincidência.
É sintoma.
É projeto.
É esvaziamento simbólico.
Quando se tira o status de ministério, enfraquece-se a autoridade.
Quando se junta tudo numa pasta só, é sinal de que ninguém quer escutar a cultura, só administrá-la.
Barateá-la.
E veja bem: não é teoria conspiratória.
É repetição.
Eu vi acontecer no Brasil.
A primeira medida provisória do governo Bolsonaro foi a extinção do Ministério do Trabalho.9
Depois, a Cultura.
Depois, o desmonte da ANCINE, da Funarte, da Cinemateca…
É o mesmo roteiro:
desidratar.
deslocar.
desmontar .
Enquanto isso, artistas seguem tentando explicar o óbvio:
Arte não é luxo.
É trabalho.
É estrutura de país.
É futuro.
E opa — não somos vagabundos.
Sim, tem gente que faz esse debate com mais dados, gráficos, relatórios.
A minha ferramenta aqui é a raiva, o corpo.
Minha contribuição é memória narrativa.
É o que se sente quando te arrancam até a possibilidade de imaginar.
Quem vota não consegue abarcar o todo das decisões políticas.
Eu mesma tô sempre direcionada ao meu umbigo cultural.
Sem dúvida, é a primeira coisa que eu olho no plano de um governo: meu emprego, meu ganha-pão, minha sobrevivência.
E imigrante, na maioria, não pode votar.
Me sinto ainda mais sem armas que antes, quando ao menos fazia alguma movimentação política (dessa esfera).
Às vezes, você se sente dentro de um barco que escolhem naufragar com você dentro. E a decisão de quem pode escolher sempre é:
É agora?
Vamos pra onde?
Pois bem.
Não vou/vamos pra lugar nenhum.
E aí, num post do Instagram, vejo uma pergunta do Guilherme Gomes / @umanticomputadorsentimental, não o conheço, mas grata:
“Terão pensado que cultura e desporto são coisas da juventude?”
Ele propõe:
e se a gente imaginasse mais?
E se inventássemos outros cruzamentos?
Um Ministério da Cultura e da Saúde: porque fruição também é bem-estar.
Um Ministério da Cultura e da Educação: porque conhecimento precisa de arte pra ecoar.
Ou um Ministério da Cultura e da Coesão Territorial: porque cultura aproxima o que a desigualdade separa.
É isso: enquanto desmontam por um lado, a gente segue propondo do outro.
Porque cultura não é só setor.
É estrutura emocional, política e simbólica.
É o que sobra quando tudo o resto falha.
✦ "Juntar o lé com o cré"
(Tribeca Lisboa e a política do espetáculo)
Volto ao meu amor por ditados populares, que já andavam sumidos daqui. Esse é direto do baú: “Juntar o lé com o cré”10: ou seja, tentar fazer sentido de coisas que não se encaixam. Pois bem, semana agitada de santos populares e calor, e lá vem o Tribeca Festival Lisboa com sua máquina de propaganda pronta para a segunda edição.
Mesmo após críticas públicas, matérias afiadas e o “fracasso” estrutural (para quem né? para mim, claro, mas não só) evidente da primeira edição, ele volta. E não volta pequeno, volta mais uma vez com apoio público e privado, imprensa carimbando com selo de relevância, storytelling pronto.
A narrativa? É essa:
“O Tribeca Festival Lisboa é o local onde o storytelling global se encontra com a alma local. Inspirado no icónico Tribeca Festival de Nova Iorque, a edição lisboeta celebra o poder das histórias para gerar conversas, desafiar a cultura e unir comunidades. (…) a cidade transforma-se num palco criativo - com filmes arrojados, conversas sem filtros, podcasts ao vivo e encontros inesquecíveis entre artistas, visionários e o público. (…) Mas o Tribeca Festival Lisboa é mais do que um festival. É uma afirmação. De que Lisboa merece estar no mapa das capitais culturais do mundo.(…) o futuro do entretenimento passa tanto pelo diálogo como pelo espetáculo.”11
Gente.
Vocês juram?
Mas tá aí, ó: provando meu ponto da semana.
Sempre ele: o mapa.
E o conceito torto de que "inserir Lisboa no mundo" precisa passar por um branding de cinema americano. Que ódio. Sério. Poupe-nos. Hahaha.
Enquanto eu aqui, artista e produtora, monto planilhas pra traduzir tudo e me deparo com essa linguagem de startup criativa:
"Curado com propósito. Aberto ao mundo."
É de regurgitar.
Na época, postei e repito o link:
“Tribeca Lisboa: Um insulto ao cinema, ao espectador e à cultura em Portugal”, como bem disse David Bernardino.
A frase da manchete continua atual. E isso foi há um ano.
Agora eles voltam.
E voltam junto com o desmonte da cultura institucional.
E me pergunto: o que mais muda nesse “junto”?
A primeira edição já não era um anúncio claro de que, na segunda, enfiariam cultura na pasta do desporto como se fosse inspiração juvenil?
É isso: enquanto o Estado some, o mercado veste terno e fala bonito.
Enquanto os artistas se matam pra pagar tradutor jurídico pra edital de 5 mil euros, o storytelling “global” toma café, opa perdão “coofee” com CEO de startup criativa em rooftop gourmet com vista pro Tejo.
Enquanto isso, a gente segue.
Com insônia.
Com raiva.
E com uma vontade teimosa de continuar mesmo assim.
✦ Burocracia como ferramenta de exclusão
(A arte de excluir com linguagem bonita e formulário infinito)
A essa altura talvez nem precise dizer que quem escreve as regras dos editais
sabe exatamente quem está sendo deixado de fora.
É tipo esse edital dos tais 5 mil euros que não dá nem pra respirar,
mas exige:
sustentabilidade, apoios institucionais, parcerias internacionais, contrapartidas sociais, sinergia territorial, indicadores de impacto e, claro, toda a parte jurídica em dia.
Porque sem isso, meu bem, não tem “profissionalismo”.
E aí vem a devolutiva:
“Seu projeto não é criação, é programação.”
“Faltou clareza metodológica.”
“Não demonstrou articulação sistêmica.”
Não é só a linguagem.
É o projeto de linguagem. Criado pra afastar. Criado pra excluir.
A real é que nem com você mestrado em editais públicos pra entender a diferença entre “programação”, “criação”, “formação”, “difusão” e “valorização patrimonial com impacto no território”, tudo isso sem perder o prazo.
E mesmo quando você entende os conceitos para aquele edital, para aquele jurí,
ainda precisa de fôlego emocional pra não mandar tudo à merda.
Porque o desgaste não vem só da linguagem dos editais.
Vem do acúmulo.
Vem da sensação de que, em qualquer esfera — do sistema ao sofá alugado —
há sempre alguém pronto pra te colocar no “seu” lugar. Qualquer é mesmo o meu lugar, hein galera?
Foi numa dessas semanas, esperando resposta de projeto, que levei outro baque: fui chamada de chantagista por um anfitrião no Airbnb. (Ai, para vocês ó o meu lé com cré). Por reclamar da limpeza.
Me hospedei em Sesimbra, lindíssima, por sinal, e que amo. Indico. Voltaria mil vezes. Mas se forem, por favor, entrem no meu perfil do Airbnb e NÃO aluguem com aquele mané do caralho. A casa cheirava a mofo.
O macho cheirava a machismo clássico, ego ferido comum.
Me mandou mensagens dizendo que eu “não devia ter dinheiro suficiente” pra ficar ali. Que “meu lugar era num hostel.”
Crônica pronta:
Tudo Igual em Portugal.
Quem sabe um dia eu a escrevo.
E sinceramente?
Ser chamada de chantagista me feriu de um jeito inesperado.
Feio. Perdi o sono real com aquele rótulo.
Porque porra, se tem algo que eu sou, é reclamona sim, mas geralmente dentro da minha razão.
Chantagem, eu não fazia nem com minha irmã viado!
e olha que essa sim tem motivos pra reclamar de mim.
(Inclusive, por coincidência da vida, hoje é 10 de junho, Dia de Portugal… e da Charlene, famosa irmã de Chaiana!
Parabéns, irmã.
Só você pode reclamar de mim, e eu de você. ;)
Corta o prólogo:
Prefiro ser chamada de vingativa.Porque minha vingança é essa: narrativa.
Se nos bloqueiam nas estruturas, eu conto.
Eu documento.
Eu abro o processo.
Chamo minhas advogadas, a tropa, as amigas.
Eu ligo. Eu berro. Eu choro.
Uso uma energia descomunal real pra reclamar.
(E falando em vingança e irmãos: meus outros três que se cuidem, será?. Vai que um dia… a crônica vira trilogia.)
E sabe por quê?
Porque, embora muita gente diga: “Chaiana, do céu, quanta energia pra briga. Para que brigar com o Airbnb…”
Eu respondo: O silêncio nunca me salvou.
E se tudo isso que escrevi for só um grito tentando encontrar eco, que seja.
mas que ecoe longe.
que incomode bem.
que sirva de mapa pra quem tá tentando entender por onde caminhar engolindo ódio e espumando ação.
E ação, afinal,
é o que dá movimento.
✦ Imigrar, viver e reclamar
(A vingança narrativa é o mínimo diante da violência cotidiana)
Essa vingança narrativa que escrevo aqui é o mínimo
diante das violências que a gente vive
e tantas vezes engole calada.
Foi assim quando minha ex-senhoria tentou me dar o golpe do calção e não quis devolver o dinheiro. Foi assim quando a DGArtes não admitiu meu projeto “por falta de histórico suficiente.” Foi assim quando um edital confundiu minha criação coletiva com “programação” e me negou como criadora.
E saibam:
já houve vezes em que eu não reclamei.
não denunciei.
não fiz barulho.
E aquilo… me rasgou. Dói.
Uma fadinha da arte morreu por dentro. Porque tem traumas que o silenciar não cura.
Só acumula.
É a contradição do não caber.
De querer ficar, mas ser lembrada o tempo inteiro de que você é “outra”.
De ser questionada até quando tenta contribuir.
Até quando se cala.
imigrar é isso:
é repensar o que não é o seu: mas é.
é tentar pertencer a um sistema que te repele com “gentileza institucional”.
é se sentir eternamente numa fila do handball que ninguém chama seu nome.
E por mais que a gente esteja exausta, seguimos.
Porque reclamar não é capricho. É cuidado. É política.
E quem reclama em voz alta, como eu,
carrega outras vozes que ainda não puderam gritar.
✦ Cartografia de desmonte
(Quando a ausência de estrutura vira a estrutura do cotidiano)
Nem todo mundo se importa com política cultural.
Mas eu me importo.
É o meu trabalho.
Meu ganha-pão.
Minha sobrevivência.
E como imigrante, nem sequer posso votar.
Então, quando me tiram o Ministério da Cultura, o que me resta?
a denúncia. a fala. o grito.
a escrita.
a insistência.
Porque o desmonte, antes de ser manchete,
é sensação.
Ele chega primeiro pelo cansaço.
Pela frustração de um edital que não vem.
Pelo atraso de um pagamento.
Pela exclusão disfarçada de critérios técnicos.
Pelo “agora não dá” que ecoa em todas as direções.
É assim que a gente sente o país escorregar, devagar e fundo.
E ainda assim, seguimos.
Mesmo com a cidade virando vitrine gourmet.
Mesmo com a cultura sendo engolida por discursos de entretenimento de espetáculo.
Mesmo com o Tesla virando Uber.
Seguimos escrevendo.
Costurando afeto em planilha.
Tentando, entre uma reunião e outra, lembrar que arte é mais do que entrega.
É mais do que métrica de impacto social para relatório. E se tudo parece pouco, ainda assim é o que temos.
Por isso, seguimos.
Não por heroísmo, mas por teimosia. E acho que quem me lê por aqui também. Não votamos, mas escrevemos e produzimos.
💌 Epílogo: ainda estamos aqui
Se você chegou até aqui, agradeço de todo coração.
Esse texto foi atravessado por tudo:
calor, raiva, sono picado, excesso de abas abertas no navegador
e falta de tempo para responder e-mails.
Mas também foi atravessado por desejo: essa grande potência.
Porque se tem algo que mais essa semana me ensinou é que:
A gente resiste como pode. E a gente pode.
Às vezes na reunião.
Às vezes na fofoca.
Às vezes no corpo cansado tentando abrir mais um formulário de inscrição às 23h59.
E não,
isso aqui não é final feliz.
É só pra dizer que eu sigo.
E que vocês, que chegaram até aqui,
também estão seguindo,
cada um à sua maneira.
Tem gente que escreve,
tem gente que dança,
tem gente que segura o bastidor da amiga artista e ajuda a costurar o edital.
No fim, estamos inventando um jeito de reexistir.
E sabemos:
Mesmo com o Ministério extinto (again), seguimos.
Até a próxima carta, com mais insônia, links, deboches amados, e notícias boas no caos. Aceito sugestões, inspirações e divagâncias coletivas.
Até semana que vem!
Com carinho e energia,
Chaiana Furtado 💜
Beijos de #FocanaLuz ✨
🧩 Cartografia cultural
Abrindo essa semana esse espaço com notas sobre cultura, políticas públicas, causos e contextos do mercado da arte e audiovisual. Tudo aquilo que não coube na cartinha, mas atravessou.
↳ Bad Bunny, Havaí, Porto Rico: quem narra, mapeia
Tem um sujeito (incrível) chamado Bad Bunny que tá, sem dúvida, na crista da onda. E tá lá ele, em todos os palcos, carregando a bandeira de Porto Rico. Um gesto estético, político, geográfico.
E aí fica o lembrete pra quem faltou a tal aula de geogafia nessa aula: onde mesmo fica Porto Rico? Por que Porto Rico fala espanhol, tem bandeira, mas é colônia dos EUA? Pois é. Quiridos. Império ainda é tema.
O novo álbum dele tem uma faixa que é um murro lírico na cara do turismo predatório, da gentrificação e do apagamento da memória. Ele canta:
Quieren quitarme el río y también la playa / Querem tirar meu rio e também minha praia Quieren el barrio mío y que abuelita se vaya / Querem minha quebrada e que a vovó vá embora No, no suelte' la bandera ni olvide' el lelolai / Não, não solte a bandeira nem esqueça o lelolai Que no quiero que hagan contigo lo que le pasó a Hawái / Porque não quero que façam com você o que aconteceu com o Havaí
A referência? O que aconteceu com o Havaí: expropriação, apagamento, destruição. Tudo embalado em nome do “progresso”, “resort” e “desenvolvimento”. Te lembra algo que escrevi auqi hoje?
E o mais doido e que eu amo, (e tenho pavor de humanos que falam aii odeio TikTok) Tem thread no Twitter, vídeo no TikTok, explicação no YouTube, gente jovem entendendo, digerindo, remixando esse debate. A música virou geopolítica de massas.
Deixar dois links:
Lo que le paso a Hawaii?! @joa_silva
Historia detrás de la canción de Bad Bunny @camilopetrucci
É o tal né do contar a própria história é ocupar o mapa-múndi com o próprio sotaque.
↳ Empreendedorismo para "women"
Sexta, dia 6, participei de um workshop promovido pela Universidade Católica de Lisboa. Tema: empreendedorismo para mulheres. Mas não disseram que era para mulheres brancas. Não precisa. Estava no subtexto.
Empreendorismo = machos + para Women = ?
Durante o "networking", uma senhora me perguntou: "Você trabalha com cultura? Mas que cultura? Portugal não tem cultura.
Fiquei espantada. Ela explicou que tem um artista em casa, e já avisou: vai ter que sair do país.
↳ Airbnb e o sentimento de fraude
Há um sentimento de injustiça e fraude própria de existir de maneira "errada" no mundo quando você tenta construir outros caminhos.
Você já sentiu que está existindo "errado" no mundo?
Quando você é imigrante a coisa piora.
Tem medo de reclamar e vir cuspe no prato? Só querer que esquentem o pastel de bacalhau e já é demais? Pois é.
↳ Analfabetismo dos editais
Se quiser desistir, desista. Porque a crueldade do processo é real.
Nem todo artista é atleta olímpico do sofrimento.
As exigências dos editais são construídas para excluir. E estão sempre tentando dificultar.
Mas seguimos. Na marra. Ou em rede.
☂️ S.O.S da semana:
🔸 O que me ajudou a continuar foi lembrar que:
Se hoje parecer demais,
escolha um projeto pequeno para terminar.
Nem que seja uma lista de e-mails.
Um lembrete no papel.
Um arquivo nomeado bonitinho na pasta de downloads.
Não precisaos dar conta de tudo.
Só seguir.
As perguntas que me rondaram ficam aqui como fragmentos do processo de escrever e viver:
O que é criação quando há troca: é programação?
Por que o silêncio às vezes parece mais confortável?
Até quando a gente aguenta não ser compreendida?
📚 Estudar é preciso
Dica de leitura da semana:
"A economia da cultura", de Gilberto Gil e Paula Porta.
Um clássico pra entender o que se perde com o fim das estruturas culturais.
Para quem ainda acha que cultura é “luxo”, está tudo lá: números, política, e poesia.
📌 Notícias da semana
Fusão da Cultura com Juventude e Desporto levanta críticas e apreensão
Associação REDE vê desrespeito pela Cultura na junção com Juventude e Desporto
💌 Carta-convite: Se esse texto te atravessou, compartilhe.
Se você também sentiu raiva, transforme em impulso.
Se quiser somar, me escreva. Porque resistir não é sozinho é em rede.
💥Oficina Estado Bruto – Nova Turma em Breve!
Está preparada para dar vida às suas ideias? A segunda turma da nossa oficina “Estado Bruto: da Faísca da Ideia ao Movimento de Criação” vem aí!
👉 Inscreva-se na lista de espera da Turma 02
🔮 Se Organiza, Artista meu!
Monte sua agenda de interesses e prepare-se com calma, fé e sem desistir.
Todas as chamadas, editais e recursos estão aqui:
👉 https://bento.me/seorganizaartista
Ditado popular que significa: cada qual com cada qual, cada um na sua. Acredita-se que tenha origem religiosa por conta da frase: clérigo com clérigo, leigo com leigo.
Fonte: https://tribecalisboa.sic.pt/
Share this post