Se Organiza, Artista!
Se Organiza, Artista! Podcast
#SOA_026 | criação e risco
1
0:00
-22:16

#SOA_026 | criação e risco

o que vem primeiro? o ovo, a galinha ou a liberdade?
1

O TAL PRIMEIRO DINHEIRO PARA UM PROJETO: COMO CONSEGUIR?

Quem me conhece sabe que eu não sou exatamente uma pessoa pessimista, mas eu sou uma pessoa neurótica e problematizadora. O que não significa necessariamente ser pessimista. Minha cabeça nunca para, nunca! Eu penso sem parar e, como uma cria da produção carioca, penso em tudo que pode dar errado primeiro – para aí sim fazer a lista de tudo que temos que fazer para dar certo: por exemplo – e se chover? Ah, então, mesmo não chovendo, precisa de uma tenda. E se o ator morrer? Ah, tem o seguro contra morte de elenco. Esse tipo de charada do controle é o que navego nos meus orçamentos entre os 90% previstos e os 10% sempre de imprevistos. Isso me faz ou não dormir ou, como tem acontecido ultimamente, dormir 9h30, 10h da noite, morta. Eu não consigo mais nem pensar. Mas eu acordo às 6h com o botão ligado diretamente no meu 220V e agora numa outra lógica de pré-produção – do desenvolvimento – de criar solo fértil e firme para um projeto, para que, quando chegar na fase de produção, tenha chão.

René Tavares: African garden, 2023

A questão é que o tema de hoje deveria ser sobre como a gente consegue o nosso primeiro dinheiro. Recebi uma avaliação esta semana de uma chamada pública que colocou isso mais uma vez em questão. Falaram que o projeto Se Organiza, Artista! ainda não tem um ano. Embora seja de utilidade pública notória, o tempo de vida contou negativamente; não olharam pelo viés do muito que fizemos nesse pouco tempo, mas pelo pouco tempo em que fizemos muito. Disseram que o projeto é muito bom, que tudo que eu pensei e expus é relevante para uma política pública, porém, como ainda não tem um ano, significa que não tem parcerias suficientes para se mostrar sustentável ou maduro.

Essas são as minhas palavras, pois as deles são: "Este é um projeto que não tem ainda 1 ano de duração. Embora apresente utilidade teórica e prática, não encontramos, pelo menos por enquanto, comprovada sustentabilidade e maturidade."

E aí vem:

O QUE VEM PRIMEIRO: O OVO OU A GALINHA?

Aí você vê… volto eu aos meus ditos populares: o que vem primeiro? As políticas públicas não deveriam justamente existir para ajudar projetos que têm interesse público? Projetos que querem ser gratuitos, de fácil acesso, disponibilizados em todas as redes sociais e plataformas e que têm claramente retorno, inclusive financeiro, para o Estado.

Faz parte da lógica de um projeto que incentiva artistas e profissionais das indústrias criativas a se burocratizarem, se organizarem, vencerem etapas e utilizarem mais os recursos que estão ao seu dispor. Eu não entendo o direcionamento nesse sentido negativo, embora, claro, eu perceba o porquê. Porque o valor pedido era da dimensão do projeto: pequeno – não era uma isenção de taxas públicas milionárias para um festival com patrocínios e lucro.

A questão é que um projeto pode ter várias maneiras de se mostrar sustentável. Mas parece que o direcionamento é sempre o mesmo: eu preciso de validação externa para que, só depois, a esfera pública local perceba que o meu projeto merece avaliação interna? Eu realmente acho isso um pouco absurdo, especialmente considerando que estamos falando justamente de política pública.

Vamos pensar na saúde! Imagina uma clínica particular tendo que dizer para uma clínica pública que o paciente merece não só os primeiros socorros, como também uma política de prevenção e cuidados com um médico de família. Para evitar justamente estar doente primeiro, para depois ele ser atendido no sistema público, entende? Tipo: "Ah, sim, eu falo que ele tem uma doença, logo, vai, você pode atender e fazer a cirurgia necessária!" Claro que eu estou levando para o mundo do absurdo, já que estamos falando de saúde, mas deveria se pensar nesse tipo de lógica quando também falamos de artes e políticas!

Como eu vou conseguir reconhecimento externo se não tenho o primeiro dinheiro, uma pequena ajuda irrisória, justamente para manter o projeto vivo e pagar taxas? Ela tem que vir dos meios públicos, que têm recursos, capacidades e direcionamento estratégico para isso? Para incentivar projetos que ainda não têm retornos financeiros, não seria isso?

CRIAR PARA EXISTIR

Eu não sei! Mas eu entro aqui numa constante contradição. Como quem me acompanha nos últimos meses sabe, eu tenho muita experiência em introduzir projetos, mas principalmente quando estou um pouco mais afastada emocionalmente. Então, eu tenho uma parcimônia, uma consideração sobre o outro, sobre a ideia que vem do outro. Mas eu também produzo minhas coisas, eu crio.

E como a minha terapeuta está me forçando a me ver como criadora, como artista, como criadora de conteúdo, eu, toda semana, venho aqui criar, escrever, falar um pouco de mim com coragem e vulnerabilidade para te mostrar não só que a gente não está sozinho, mas talvez para mostrar que eu tenho uma percepção um pouco aflorada sobre como nossas ideias precisam ser traduzidas para diferentes canais para que elas consigam existir no mundo. Porque quem cria quer, antes de tudo, que o processo seja vivo, com liberdade, que o projeto esteja no mundo!

René Tavares: The Big Discovery, 2024

A LIBERDADE DE COLOCAR ALGO NO MUNDO

Eu tenho acompanhado o lançamento do disco novo da cantora portuguesa Gisela João, chamado Inquieta. E esse nome é muito bom! Porque essa mulher resolveu regravar clássicos da música da Revolução de Abril, trazendo uma nova roupagem para o que se chama aqui em Portugal de música de protesto, sobre o 25 de Abril. E, no meu olhar de estrangeira, que não aprendeu nada sobre isso na escola e simplesmente tem aprendido desde que pisou em solo português, tenho começado a perceber a importância do 25 de Abril em vários contextos. Este ano, inclusive, são 50 anos das independências dos PALOP. Principalmente por causa das comemorações e dos eventos públicos que receberam investimento público, que não era em troca de retorno financeiro, mas que mantêm essa memória viva.

E a Gisela, nas suas entrevistas, fala muito sobre liberdade – inquieta sobre a tutela da liberdade. Sobre cantar a liberdade. Sobre poder misturar sua trajetória musical de uma maneira madura. Porque ela percebe que foi silenciada e tentaram controlá-la em vários momentos da sua vida, pelo que entendi da sua história pessoal e profissional. E hoje ela dá esse grito de liberdade na versão de um novo álbum – revisitando seu passado público e também privado, revendo sua nação e sua política sobre seu corpo e sua narrativa.

E é isso que eu percebo também – narrar nossas liberdades com mais maturidade é olhar para o nosso currículo pessoal e profissional e falar: eu sou gostosa, eu sou ótima. Uma mistura de Ivete Sangalo e sua música de trabalho do carnaval, se reconhecendo gostosa e poderosa, com essa inquietude saliente de um 25 de Abril revisitando essas novas cartas portuguesas, sabe?

Ouvindo, sim, uma playlist que mistura hits do carnaval 2025 – porque estamos longe, mas não mortos – e deixando o Inquieta rodar do início ao fim, eu revejo e reolho para essa avaliação do meu projeto bem nesse limiar e penso: vocês gostaram, porque parece que sim, né? Mas então agora, com medo, cagada, apavorada do feedback público, eu vou, eu quero (tentar) provar para vocês que esse projeto é sustentável pelo simples fato de que ele é. E eu tenho 20 anos fazendo isso. Esse projeto tem menos de um ano, mas eu, não. E aqui, porque é isso que eu faço toda semana! Mesmo sem dinheiro, sem apoio público e sem financiamento, a gente está aqui toda semana! Isso não é compromisso com o público e com as políticas culturais? Eu não sei mais o que é!

Tem um grito de liberdade quando a gente coloca algo no mundo. Não importa quantas roupagens a gente use para falar sobre o passado, todas as invenções, todos os novos arranjos entre palavras, na sua versão nova de Gisela ou como Jorge Luis Borges cita tão lindamente no seu conto Biblioteca de Babel –, todas essas possibilidades de encontros e desencontros são o que nos motivam a ficar lá, buscando as tais letras e arranjos novos, diante de todas as possibilidades de um alfabeto que nos confortam.

A NECESSIDADE DE APROVAÇÃO

Como se percebe, eu sigo um pouco pisando em ovos, sempre espiando sobre mim mesma, sobre o feedback do outro, sobre a minha constante necessidade de aprovação. E não são essas de editais públicos.

Porque nada me incomoda tanto quanto um amigue, que eu valorize profissionalmente, me dizer que não gostou ou que não entendeu o meu projeto. Porque os avaliadores estão lá para me julgar, me comparar, para apontar o que eu ainda não tenho, até mais do que o que já tenho nesse pouco tempo ou, às vezes, de IDEIA, Jesus! E ninguém melhor do que eu mesma para saber o que ainda não tenho! Mas os parceiros mais próximos não poderiam vir com mais apoio?

Agora, nesse processo de escrever os editais para o fim do mês, tem sido um elástico. Estica e cresce. Essas caixinhas que subdividem nossos projetos podem parecer insuportáveis, mas elas são um método de comparação. Quando um edital é público, ele precisa sim ter um método para perceber o que um tem e o que o outro não tem: parâmetro, nota e regulamento. E ok – mas me pedir para ter dinheiro prévio sobre uma ideia num edital de criação de novos projetos é mais do que um ovo e a galinha, é garantir publicamente que só vão dar dinheiro a projetos que já tenham sustentabilidade e estrutura – podem dar também, claro – mas e um misto aí? Mas só? E a % do orçamento em ideias realmente inovadoras e, por isso, ainda sem nenhum dinheiro e que sejam bancadas 100% por um edital público? Triste a gente não poder depender 100% de um edital que é público.

Pois então, que façam uma linha nova de primeiras ideias reais de criação e não me venham com esses open calls de primeiras exibições, que a maioria diz que até 35 anos é a idade limite de primeiras exibições e “primeiras” criações – artista iniciante agora tem idade? Que ódio! É tipo um Porta 65 de chamadas etaristas e, pior, são muitas e com o quê? Com dinheiro público!

Mas isso voltamos a discutir dia desses, sobre o etarismo nas artes – após o Carnaval, o Oscar, DGArtes e os grandes eventos.


SEGUIR, CRIAR, NÃO SE PARALISAR ou como desistir é poderoso

Eu não me sustento financeiramente ainda desse projeto, do SOA, embora eu queira muito no futuro. Eu ainda não contrato ninguém, então não sou responsável pelo emprego de outras pessoas. Porque, quando a gente chega nesse estágio, o nível de risco e liberdade diminui.

Mas a parte boa de estar começando, de ter menos de um ano e não ter parceiros sustentáveis, é que agora o meu compromisso é, antes de tudo, comigo mesma. De manter isso o mais perto da ideia original possível: democrático, acessível, livre. Eu quero expandir isso, mas horizontalmente.

René Taraves: Grosso - Carruagem Lusa, 2023

Vejo artistas ao meu redor que desistiram de colocar seus projetos nos editais nessas semanas porque perceberam que não estavam prontos – são muitas variáveis. E isso é um aprendizado! Tão bom poder falar não! Um grande: "Agora não". Às vezes, não precisamos botar o nosso edital no mundo agora. Os editais cíclicos vão voltar.

Mas também tem o frenesi de quando vejo artistas que nunca escreveram um edital na vida e que agora estão fazendo isso. E isso me emociona! Eu me incluo nessa rodada! Porque tem gente acreditando tanto nos seus projetos que está encarando a burocracia com brilho nos olhos. Chato? Muito. Mas vão fazer, sim. Talvez não ganhem, ou ganhem – mas o corpo, o músculo, a força, o nível de movimento e de articulação que se fez para, no final, apertar o botão de "submeter", isso ninguém nos tira.

E eu espero que as bancas percebam isso! Percebam como é difícil para um artista lidar com seu processo criativo e, ao mesmo tempo, com um processo burocrático gigante! Então, antes de dizer que o projeto não tem maturidade ou sustentabilidade, talvez a primeira coisa que a banca deveria dizer é:

"Parabéns! Você colocou sua ideia no papel! Você venceu não só a autossabotagem, como também todos os limites de caracteres impostos, tipos de contratos, e apertou o botão de 'submeter'!"

E se tem uma coisa que me faz continuar, é saber que inspiro vocês a não desistirem... e também a desistirem! Então sigamos! Com as nossas avaliações e feedbacks internos entre parceiros e amigos – que doa, mas que seja. Que troquemos, falemos, que escancaramos. Esse aqui é o maior prêmio do Se Organizar, Artista!.

O processo criativo precisa acreditar, perceber, sentir as ideias nos nossos poros – às vezes, chega na cabeça e aí conseguimos botá-las no papel, mesmo que depois virem faísca. Às vezes, elas só ficam no estado bruto da faísca – ali, ativas, pegando fogo, ardendo – mas acharemos juntos um novo contentor para o fogo não apagar. É um circuito meio tocha olímpica de esforço “hercúleo” de Hércules, essa parada aí de criar arte – seja qual for o formato, seja qual for o domínio, a linha.

Arte não importa se é cruzamento disciplinar, é arte.

O importante é... é... é... é o quê mesmo?

Com carinho e energia,
Chaiana Furtado

#FocaNaLuz ✨

Deixe um comentário

Se Organiza, Artista! é uma publicação sustentada pelos leitores. Considere apoiar nosso trabalho assinando de forma paga.

Migrar para o pago


☎️ Chamadas abertas em destaque - Portugal💥

📍fevereiro
19/02 - Music Moves Europe
20/02 - Tijolo - Residências Artísticas
26/02 - DGARTES: Programa de Apoio a Projetos 2025
28/02 - Cultura em Expansão - Porto
28/02 - Programa de Apoio à Circulação de Espetáculos 2025 da Fundação GDA
28/02 - One-to-One 2025
📍março
02/03 - Sonoscultura - Residência Coletiva
09/03 - Open Call Jazzopa 2025 - oficina criação colaborativa e performance: jazz, hip-hop, spoken word, em diálogo com outras linguagens.
10/03 - Apoio à Criação Artística - Gulbenkian
16/03 - Programa de Residência para Artistas Visuais e Cineastas - Cité Internationale des Arts
31/03 - 5ª Edição do Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina
31/03 - Programa Regional NORTE 2030
31/03 - Prémio Gulbenkian Património – Maria Tereza e Vasco Vilalva
📍abril
06/04 - 3.ª Bienal de Jovens Criadores de Mafra
23/04 - 3ª Edição dos Novos Talentos FNAC
24/04 - Creative Innovation Lab 2025
📍setembro
30/09 - Concurso de Texto de Teatro TEC 2026
📍outubro
31/10 - Apoio à Internacionalização - Fundação Calouste Gulbenkian (atenção: o prazo pode ser encerrado antes, dependendo do número de candidaturas!)

🚀 Para todas as chamadas em aberto que publicamos, dicas gerais e materiais de estudo e pesquisa acesse todos os links pelo nosso Bento.me ;)


🏹 #SeInspiraArtista

Obra que dialogou com a carta da semana foi o Rene Cruz Tavares | @renecruztavares - artista que “integra a Coleção de Arte Contemporânea do Estado Português. A obra do artista são-tomense passou a fazer parte do acervo público, reforçando a representação da arte africana e da lusofonia no património nacional”. - vi essa materia na Bantumen e trouxe para cá.

🔗René Tavares integra a Coleção de Arte Contemporânea do Estado Português

René Tavares nasceu em São Tomé e Príncipe em 1983. O trabalho de Tavares baseia-se em um processo de pesquisa que atravessa arquivos, fotografias e literatura, trazendo à tona temas relacionados a questões históricas e sociopolíticas que afetaram diferentes países africanos. Ao questionar heranças assimiladas, negligenciadas e esquecidas, e desafiar a rigidez das categorias e preconceitos, as obras do artista são produzidas de maneira impulsiva e engajada, com o objetivo de conscientizar e desencadear processos de resiliência social. Fonte


🔔 Já apoiou um artista independente hoje? 🤍

Interaja! Curta, Comente, Compartilhe!

Seu apoio é o que mantém este projeto vivo e acessível. Seja através de assinaturas pagas, curtidas, comentários ou compartilhamentos, cada ação faz toda a diferença. Ficar lutando no meio de big tecks é exaustivo. Não vamos sucumbir.

Nosso objetivo é valorizar o trabalho artístico e os conteúdos que compartilhamos. Considerem apoiar financeiramente.


🔮 Se Organiza, Artista meu!

Encontre todos os links das chamadas publicadas nas nossas redes: bio.site/seorganiza.artista

Monte sua agenda de interesses e não se desespere. Prepare-se para as chamadas com calma, fé e sem desistir. ;)

Se Organiza, Artista! é uma publicação sustentada pelos leitores. Considere apoiar nosso trabalho assinando de forma paga.

Migrar para o pago

Compartilhar

Discussão sobre este episódio

Avatar de User