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#SOA_012 | culpa minha
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#SOA_012 | culpa minha

se o ódio faz avançar, a culpa ensina a recalcular a rota
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Somos herdeiras da culpa desde Adão e Eva? Mas que cagada! Como uma viciada em viver intensamente os ditados populares, tenho lidado com a culpa. Onde colocá-la? Como renomeá-la? Uma coisa é certa: não dá para viver ou criar sem culpa.

Sou ensinada pela existência social e religiosa a carregar a culpa como uma sombra pesada que recai sobre os ombros toda vez que cometo um "deslize", algum ato de travessura da minha versão de “menina má”. Contudo, tratar a culpa seria como remediar a tristeza: não dá. Olhar para ela não significa querer que desapareça, mas aceitar sua presença — ora como guia, ora como guilhotina dos meus desejos.

Assim, escolho semanalmente voltar aqui para escrever sobre o processo criativo. Faço disso um norte para aliviar a paralisia da culpa e deslocar o sufocamento com uma injeção de oxigênio renovado de liberdade. Transformar travessuras em travessias: essa é a proposta.

Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.

Achismo de terapia

Por anos, acreditei que terapia, arte e criação poderiam me libertar da culpa. Tentei me livrar da culpa católica, da culpa de ser mulher e da "culpa por sentir culpa". Fiquei presa nesse espiral de loucura que me paralisava. Não consegui. Quando percebi isso, tive ódio.

Não estou à altura das minhas próprias invenções. Detonar o capitalismo e tudo que exige a perfeição da produtividade — inclusive de mim mesma — é uma luta diária. Sinto culpa por não performar como deveria, por não alcançar a perfeição que inventei: ser discreta, eficiente e impecável. Até meu riso já tentei "consertar", culpada por ser intensa até nisso. Rir alto demais, que pecado!

A pergunta que me move esta semana é: em que momento a culpa se torna um obstáculo? Como nos beneficiar do lado positivo dessa força? Onde está o equilíbrio entre "não posso entregar qualquer coisa" e "nunca serei boa o suficiente"? Essa culpa extrapola: entra na relação com o corpo, com a comida, com o tempo. Ela se materializa em alergias, no meu corpo tentando se defender de inimigos invisíveis. E, comendo uma torta de limão, com um café no meio das férias, veio choro, o desespero, e ela me invadiu: a culpa.

Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.

Minha torta de limão

Depois de um almoço, queria um café. Mas quando vi a torta de limão cheia de suspiro no balcão, eu disse: quero a torta também! E aí: ladeira abaixo foi meu cérebro. Você pode pensar: culpa por comer açúcar? Não, não é só isso. Minha culpa é por tudo: o glúten, o açúcar, o leite. Em 10 segundos, entre a escolha e a primeira colherada, eu senti m gosto de liberdade plena — acreditando ser meu o desejo e só o meu desejo que disse: quero, logo vou ter. Mas logo depois, vem o ódio, a raiva, a culpa. Perceber que não era só sobre o desejo do gostoso, do doce, foi também o desejo do "Me autosabotei, vou passar mal. Por quê?" Esse ciclo é frequente na terapia.

Essa sensação invade também nossos processos criativos. Projetos são como bebês frágeis que precisam de nós para crescer. A culpa, quando domina, inviabiliza nossas criações. Ela paralisa e cria angústias desnecessárias.

Elaborando as articulações diante da torta de limão, somatizada à culpa por estar de férias sem sequer ter emprego formal, vim escrever para elaborar como podemos botar esse sentimento na bandeja como mais um ingrediente essencial do fazer artístico.

Temos ingredientes indispensáveis para sermos artistas: medo, auto sabotagem, vergonha, angústia e, claro: a culpa. Acho que se temos tudo isso e usamos bem misturado no nosso fazer, já podemos nos chamar de artistas. Procrastinação faltou? Claro que não: é a consequência disso tudo aí. ;)

Me vê um café e a culpa, por favor?

Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.

Tomada do poder pessoal

Como nós lidamos com a culpa? Tudo que não somos capazes de eliminar, podemos usar. Como disse Emanuel Aragão: viver sem culpa é uma fantasia. Então, que ela seja também uma força. Bora, meus guerreiros das artes!

Se der certo, culpa. Se der errado, mais culpa — mas um “eu já sabia”. Logo: força na peruca!

O ódio é um motor para mim hoje, como já disse por aqui, poderoso. O ódio revira meu corpo e ascende chamas de movimento. Me deixa inquieta. Mas a culpa não. Ela geralmente tem a força de me apagar, me desmanchar, me derramar em choro e refletir no sentimento complexo de que me abandonei. Sentir isso até hoje me deixa no abismo: quanto mais tenho, mais culpa tenho de estar com culpa, nesse espiral de loucura que não é libertador: encolhe.

E esse lugar do sentir culpa porque abandonei meu desejo é mentiroso.

Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.

A viagem

A virada para mim dessa viagem, da ingestão da torta, foi pegar a crueldade que meu cérebro e meu corpo estavam prontos a iniciar. Inventei uma nova narrativa: com antialérgicos e água, muita água, acreditei no poder interno. Abracei meu ódio, abracei minha culpa e, dessa vez, cuidei e compartilhei ela. Já que ela vinha me visitar, então fiz a cama para ela dormir bem. Escrevi sobre ela, falei sobre, dialoguei com o outro fora de mim, chorei. Reconheci um percurso enorme da infância até aqui com a minha relação com a alimentação e suspirei tomando chá.

Toda vez que sinto culpa da comida que ingiro pelo processo alérgico, faço chá. O quente fora, vira dentro e alivia. Qual o seu chá? Como aquecer teu processo de dor?

Assim, no paralelo penso que o que me impede de criar não é o medo de errar, mas o peso de achar que deveria ser bom sempre.

A força da vulnerabilidade não vem em expor sem sentido, mas na tomada da consciência. Isso, para mim, é o pulo do gato: tentar mudar o padrão de valor meu e compartilhá-lo é o que faço aqui. Redesdenho minhas forças e minhas culpas. Quando escrevo esta carta semanal, tomo a decisão de ser fiel a mim mesma. Aceito minha culpa como um norteador, um reflexo do que valorizo.

Indicação de um desejo

Não terminar algo — a ideia que simplesmente não consegui dar conta — achar o meio do caminho. A culpa é uma pista para investigar alguma coisa. Quero começar a me permitir investigar o que há por trás da culpa, pois é algo que me ameaça e me encanta: sentir culpa. Então, meu desejo é que, quando venha, possamos tomar as rédeas dessa investigação.

A culpa não precisa ser uma inimiga, mas sim uma testemunha silenciosa do que valorizamos. Toda criação é um pacto com nossos fantasmas; toda culpa é um norteador do que queremos.

Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.

Criar é aceitar fins

Culpa pode surgir no lugar de outra coisa que sentimos ser pior que ela: o fim. Todos os processos têm seu ciclo. Eu criei uma produtora, sonhei tanto, tão lindos os desejos — fantasia que poderia ter feito algo. É um processo de luto que até agora sinto: vergonha, trauma, medo. Tento me defender do que é impossível: do fim. Até o filme que eu produzi e nunca finalizei. Não aceito ainda que esse foi o fim: culpa, medo, fim. Repetição.

Culpa também surge no luto: o fim de ciclos, projetos, sonhos. A culpa pode ser o escudo contra um fim que ainda não aceitamos. Criar é aceitar que nem tudo será eterno. Aceitar o fim, mesmo que carregue culpa, é libertador. Será que um dia consigo?

Sempre tem que ter um culpado?

Oscilar entre "a culpa é minha", "é do outro", "é do capitalismo (sempre)". Eu não fui suficientemente forte para lidar. É impensável. Eu não quero ser culpada de tudo, logo, sendo a culpa minha, eucoloco em quem eu quiser, não é esse o ditado? Oscilar entre o pior "tá fora" x o pior "tá dentro". Não ser capaz de finalizar um projeto ou uma ideia é a morte de uma produtora, e eu tive e tenho que lidar com essa morte todas as vezes. Seja porque fui demitida, porque me demiti, porque a relação com o projeto acabou, ou porque o filme nunca se finalizou.

Perder o nosso objeto de amor. Nossos projetos, parte dos nossos sonhos. Minha produtora. Entender a origem e o que elas estão falando. Nossa pesquisa sobre a raiva, nossa pesquisa sobre a culpa. E não chegar em conclusão nenhuma e mesmo assim escrever, viver e produzir em cima disso. Um PHd autoinvetigativo sobre porque ainda temos culpa sobre tudo aquilo que sonhamos, mesmo sabendo que não poderíamos ser diferentes do que fomos.

Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.

Ser produtiva nas férias

Outras vezes, não — hoje sinto culpa de estar de férias e vim aqui escrever para me sentir processando e trabalhando, não só o sentimento, como a culpa de desligar do mundo que não paga as minhas contas, nem as minhas férias, mas amansa o sentimento de que fazer para o outro é maior do que fazer para mim.

Queria ter lido mais, ter comido mais, ter descansado mais, ter feito lista de organização sobre o que fazer. Voltei das férias caótica, olhando minha conta bancária, perdida nas reuniões, prazos, fundos. Com fuso horário desconfigurado, corpo cansado, fora da minha casa — ainda me sinto aérea, lunática e desenraizada.

Passei pelo perigoso processo de glorificar as minhas culpas para percebê-las como virtude, como consciência de privilégio e classe — produzir a culpa das férias é nada além de me aproveitar de um “tal” traço virtuoso que inventamos para lidar com a nossa produtividade, de “nossa como sou produtiva”, que merda é perceber que fiz isso, de novo e nas férias!

Quando o ódio move e a culpa recalcula

Somando os ditos de cada semana estamos com: Vá com medo, vá com culpa, reinvente o seu desmanual, mas não paralise. Mesmo julgando e se culpando, continue. Se o ódio faz avançar, a culpa pode ajudar a recalcular a rota. E o dito máximo da nossa carta-processo-de amor é: não parar enquanto se buscar o movimento.

Com carinho e energia,

Chaiana Furtado
Beijos de #FocanaLuz ✨

🏹 #SeInspiraArtista

  • A artista que trazemos aqui essa semana é a Elena Tejada-Herrera. Elena é uma artista contemporânea peruana que trabalha com fotografia e arte digital. Sua obra explora questões de identidade e o corpo, utilizando elementos do surrealismo e da arte conceitual. Explorei um pouco as camadas de culpa, desejo e autoimagem de forma introspectiva e espero ter conseguido dialogar um pouco com seu trabalho.

    Elena Tejeda-Herrera, “They sing, They dance, They fight”, still de video.
  • Video Arte da Elena que sairam os stills: “They sing, They dance, They fight” - (Elas cantam, elas dançam, elas lutam) apresenta diferentes grupos de mulheres que, sem pedir desculpas, interpretam construções alternativas de feminilidade. Uma celebração do amor e da força.


🔦 Lanterna da Foca

Aqui vão algumas referências que consultei para escrever essa semana:


☎️ Chamadas abertas em destaque - Portugal💥

Para todas as chamadas em aberto que publicamos, dicas gerais e materiais de estudo e pesquisa acesse nosso Bento.me ;)


🔮 Se Organiza, Artista meu!

Encontre todos os links com as chamadas publicadas através das nossas redes bio.site/seorganiza.artista. Monte sua agenda de interesses e não se desespere. Prepare-se para as chamadas com calma, fé e sem desistir. ;)


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