No dia 16 de novembro, rompi uma barreira pessoal: fui ao Teatro São Luiz assistir ao espetáculo Hatched Ensemble, da Mamela Nyamza, dentro da programação do Festival Alkantara. Fazia dois anos em Portugal sem nunca ter priorizado um investimento no teatro. O motivo? Uma mistura de questões financeiras, falta de tempo e aquela velha história de "prioridades". Porém, sempre me cobrando: como trabalhar no universo criativo, envolvendo espaços culturais, sem conhecê-los?
Limitações do imigrar
Imigrar tem disso. Muito disso. O não conhecimento de um todo, das nuances, das possíveis expansões. Mas também tem o outro disso — estar atento a tudo, já que tudo é novo e nada natural. Tudo parece novo, nada parece natural. No entanto, é o estranhar que nos mantém atentos. Decidi unir o útil ao agradável: queria finalmente experienciar o Festival Alkantara, cuja curadoria acompanho e admiro desde que cheguei, e precisava, literalmente, sair de casa.
A compra dos ingressos foi uma epopeia — se é sobre conhecer e estranhar o aparelho cultural e suas ferramentas disponíveis em Portugal, que experiência pessoal angustiante. Plataformas tecnológicas desatualizadas dos teatros tornam o processo confuso e frustrante. Foram horas tentando acessar vagas "esgotadas" que, de repente, reapareciam. Desisti do celular e fui ao computador até conseguir. A vontade falou mais alto. Bora lá, produção! Abri o computador, fiquei horas atualizando o site, tentando, tentando e enfim… thcharam! Consegui!

Arte (sempre) arrebata (?)
Adoro dança, mas acabou o espetáculo e me percebi sem sentir aquele arrebatamento que eu esperava, aquele que me levou a ficar horas tentando conseguir o ingresso. Isso me incomodou. Afinal, como lidar com obras que não "nos tocam", mas que “sabemos” ser boas? Especialmente quando há um investimento de tempo, dinheiro e energia, como uma ida ao cinema para um filme "ruim". Comecei a me questionar sobre o sentimento de “o problema sou eu” — será que, por conhecer pouco daquela linguagem, se eu conhecesse mais, teria gostado?
Após o espetáculo, teve a entrevista com a criadora, a artista Mamela Nyamza, e tudo dentro de mim ganhou outra perspectiva. E veio o arrebatamento: Ela. Sua postura — firme, digna, fiel ao processo, sem atacar ou defender nada além da própria verdade — me arrebatou profundamente. Mamela não atacava nem defendia nada além da própria verdade. O que a guiava era ela mesma, sua arte, seu processo, sua história e narrativa. Com um alicerce que ninguém jamais poderá refutar — o dela mesma.
Não acredito em arte que tem que se explicar. Mas…
Após ouvi-la, percebi nuances que não havia captado. E iniciei uma investigação pessoal e política: por que certas coisas me escaparam? Não era só porque desconheço teoria e a história da dança… (Que história? E que teoria?)

Percebi algo importante: talvez o arrebatamento esperado não viesse porque não era para mim. A arte tem frequências diferentes, sensibilidades diferentes. No palco, vi dez corpos negros em movimentos quase estáticos, precisos, coletivos. Sempre juntos, mas nunca iguais. Isso causou em mim uma resistência imediata: por que a falta de movimento e a repetição me incomodavam tanto?
Incômodo também não é arrebatamento? Quando a arte não te arrebata, mas te incomoda, ela talvez esteja te pedindo para parar e ouvir algo que você precisa se deixar escutar.
O movimento oposto ao “desejado” me incomodou tanto que me fez remexer na cadeira e me colocou diante da minha visão colonizada pelos europeus, bem como do meu próprio racismo. Era isso — eu estava esperando o que toda visão estereotipada, eurocentrada fez com esses corpos africanos. Não tive.
Na conversa, alguém perguntou: "Por que você não desistiu de ser artista?" A resposta foi o soco mágico despertador: "Porque eu acredito em mim."
E tipluf — tapa na cara, sopro no coração, mergulho e espanto de CA-RA-LOWS! É isso!
O complexo de Cassandra
Pouco sei e estudei sobre mitologia, mas cada dia mais ando me interessando. Por ser de uma nação colonizada pelos europeus, minha visão eurocêntrica do mundo esbarra na visão colonial que foi programada em mim. Este ano, graças ao curso da Manuela Cantuária, Vulneráveis Venceremos, prestei mais atenção aos arquétipos e estereótipos construídos nas narrativas com personagens femininos.
E no meio dessa semana, após ver o espetáculo e começar a rascunhar essa newsletter, chegou um presente do Brasil, o livro O Complexo de Cassandra: Histeria, Descrédito e o Resgate da Intuição Feminina no Mundo Moderno da Laurie Layton Schapira que a Manu indica na biografa de seu curso - e comecei a ler.
Até agora, só li 40 páginas. Mas comecei a conectar os pontos da maior tragédia grega: a transição do matriarcado para o patriarcado, que a história de Apolo e Cassandra exemplifica. Entre os pontos perdidos, está a intuição, substituída pela ordem lógica e objetiva representada pelo arquétipo de Apolo.
Que merda.
As primeiras páginas, o curso, o espetáculo, a entrevista, um emaranhado de sentimentos por aqui: cacete! Essa artista, quando disse "eu acredito em mim", demonstrou algo totalmente diferente do que sinto ou sei sobre mulheres artistas.
Voltei ao espetáculo. Hatched Ensemble foi criado por Mamela em 2008, quando ela gerava um filho e vivia um divórcio. Já leu-se, na imprensa, que este seria um trabalho sobre ser mulher, negra e mãe no sul da África. É isso, mas também não é só isso. Talvez esteja mais para um tipo de "complexo de Cassandra" — profecias contadas, vidas mostradas, mas ignoradas.
Minha visão patriarcal (também racista) e mesquinha achava que todas nós estávamos fadadas ao clássico “não acredito em mim”, à autossabotagem. Não éramos para ser um conjunto de mulheres fadadas a isso? Como se Apolo tivesse cuspido em nossas bocas seu veneno—em todas. Joguei fora assim meu crédito de feminista intersecional que achava que conquistava lendo biografias. Tosca.
Cassandra, da mitologia grega, foi amaldiçoada a prever o futuro sem que ninguém acreditasse nela. Pior: ela mesma passou a duvidar de suas visões. Esse "Complexo de Cassandra" é algo que ressoa em mim profundamente. O mito reflete o descrédito que tantas mulheres enfrentam, especialmente no que diz respeito à intuição e ao acreditar em si mesmas. Cadê a racionalidade, nos perguntam? Como você sabe disso? De onde você tirou isso? Por que está me perguntando isso? Quantas vezes já escutei e precisei me defender, até quase enlouquecer — porque tem um “eu sei, eu sinto” tão poderoso em mim que racionalizar o faz perder.
Ao devagar estudar mais sobre o tema, escrevendo essa newsletter, investigando meus próprios processos diante do mundo criativo, percebo o quanto o patriarcado me afastou da minha intuição feminina. A lógica e o objetivismo, representados pelo arquétipo de Apolo, subjugam o instinto e o subjetivo.
O meu, o seu, o nosso racismo
A postura de Mamela trouxe uma nova visão: nem todas carregam ou precisam ter como referência esse complexo. Há outros caminhos reais e possíveis de se “salvar”. Algumas mulheres como ela, encontram força em si mesmas e rompem com as expectativas hegemônicas sobre sua arte e sua identidade. Sua fala me fez refletir sobre os prejuízos do racismo, que limita não apenas os outros, perpetua violências, mas também a mim mesma, ao reduzir a complexidade de realidades tão diversas.
O quanto perdemos ao sermos racistas? E isso digo no egoísmo de mim mesma.
Corpo é um território - a dança é uma narrativa
Mamala reascendeu em mim a chama da arte de acreditar em si quando ninguém for mesmo capaz. De sermos capazes de nos transfigurar. Na entrevista após o espetáculo, ela completou falando sobre o processo do espetáculo e seu nome — que vem do verbo hatch do inglês: o chocar, como uma ave, sair do ovo, parir — explicou que o que vimos foi, primeiro, um solo que ela construiu em homenagem e conexão com suas antepassadas — primeiro o dançou enquanto grávida — e que ela hoje apresentava a transposição para os 10 bailarinos no palco. Uma adaptação, uma expansão, mas que vinha de um lugar dela. Reforçou que nunca esteve sozinha dançando, não só porque já estava grávida em seu "solo", mas com as referências e o acreditar coletivo que seus gestos e corpo carregavam.
A maternidade que cria um tipo de isolamento e introspecção que transparece na coreografia: passos contidos, uma repetição quase sufocante. O corpo território e a dança, uma narrativa. O que vi em cena foi uma construção profunda, carregada de significados históricos, culturais e pessoais. A repetição e os movimentos quase estáticos não eram uma falta de ação, mas uma forma de resistência silenciosa, de persistência. Esses corpos não estavam ali para entreter ou agradar.
Entendi, então, o mais um tapa - meu incômodo fazia parte da proposta. Era, na verdade, parte do convite. Nessa noite o complexo de Cassandra virou arrebentação.
Em seu Instagram, a artista publicou algo que, em uma livre tradução, seria:
“Realizar este trabalho em diferentes países permite aprender muito. Como sempre disse sobre este trabalho, ele sempre ressoará de forma diferente tanto para o público quanto para os críticos. Como artista, notei que algumas pessoas ainda pensam que as coreógrafas africanos formam um grupo hegemônico, esquecendo que cada coreógrafa tem seu próprio foco ao criar. Assim, pode ser que certas expectativas estejam equivocadas nesse sentido. Como, por exemplo, as expectativas abaixo, deslocadas, sobre mim como coreógrafa vinda da África. Não devem nos enxergar apenas como cerimoniais.... A imagem acima é a parte inicial, que desafia os diferentes olhares.”
Publicação original:
Nossa visão da arte e do que somos capazes de arrebatar, sentir, explorar, nunca é um processo individual ou ingênuo, atente-se. Arte é para te deslocar. E se o que você precisa não for o conforto, mas a fricção?
Arte e identidade
Na obra de Mamela, percebi que seus projetos se adaptam, evoluem e carregam múltiplas camadas de identidade—ela, sua mãe, sua avó, seu filho, todos coexistindo. Isso me trouxe inspiração para valorizar mais a arte como um processo vivo e integrado.
Achei no YouTube parte da apresentação dela com o filho já em palco. Projetos e identidades não morrem, se adaptam, se movem: o corpo dela, fora dela.
O que você espera da arte?
Ao final do espetáculo, saí mexida, comecei a falar sem parar sobre, a escrever e reescrever esse texto. Pensei em publicar sobre na semana passada, não estava pronto. Até agora não sinto que está “pronto”. Não exatamente “arrebatada” do jeito que imaginava, mas inquieta. A inquietação persiste. Pergunto mais uma vez: o que eu espero da arte?
Recrio uma própria fala da Mamela: "Eu faço arte para ser vista, não para ser ignorada. Mas não faço para agradar."
Saí do teatro pensando em como me conectar mais com a dança contemporânea, como superar essa barreira do “não entendi”, “não é para mim”. Nem tudo na vida precisa ser entendido, nem tudo é para ser entendido. (Alô, alô minhas Casssandras!) Às vezes, só é preciso sentir, acreditar e resistir a esse sentir.
Prioridade como novidade
O Festival Alkantara foi mais do que uma chance de assistir a um espetáculo. Foi um lembrete de que, como imigrante, artista e pessoa, minha missão é sempre expandir. Conhecer o novo, questionar, sentir, trocar, estranhar, voltar ao meu movimento com mais prioridade de respeitar meu desejo inquietante de nunca estar “bem”, nunca me sentir “satisfeita”.
Assim, para quem está em Lisboa, recomendo aproveitar os últimos dias do Festival e coloco o destaque: Heverton Harieno - Blackface, O Documentário. ;)
E não, não conheço ninguém da produção, ou tenho relação alguma de trabalho com as equipes. Estou escrevendo 100% como espectadora e consumidora cultural. ;)
O poder de acreditar em si mesma
Depois de refletir sobre tudo isso, o que ficou com mais força em mim foi a certeza de que, como mulher, como imigrante, como criadora, precisamos sempre nos lembrar da importância de acreditar em nós mesmas. Embora teimemos, não será a validação de ninguém que vai nos ajudar a sermos quem somos ou para fazer a arte que queremos. O valor da sua criação, da profundidade de sua voz, é algo que todos, especialmente as mulheres, precisam aprender a cultivar.
Ela não só foi capaz de "chocar" e parir sua arte, como também inspirou a todos nós a fazermos o mesmo: a darmos à luz nossas próprias verdades, sem medo de sermos ouvidas ou compreendidas. O que realmente importa é que, no fim, de alguma forma, não é fácil e não há novidade nesse chamado: precisamos acreditar em nós mesmas.
E, no final das contas, é isso que nos salva.
🏹 #SeInspiraArtista
Nesta semana, convidamos você a mergulhar no trabalho de Mamela Nyamza, uma das vozes mais potentes da dança contemporânea da África do Sul. Bailarina, coreógrafa, professora, curadora, diretora e ativista, Mamela combina estilos tradicionais e contemporâneos em criações que dialogam com questões autobiográficas, sociais e políticas.
Nascida em 1976, em Gugulethu, na Cidade do Cabo, Mamela cresceu em um ambiente onde sons e ritmos permeavam o cotidiano, despertando nela uma conexão visceral com a dança. Após a morte da mãe, encontrou na arte uma forma de expressão e resistência, usando o corpo para narrar histórias reais e confrontar temas como violência de gênero, racismo e discriminação contra mulheres negras e LGBTQIA+.
Além de sua carreira artística internacional, Mamela lidera projetos de impacto social. Um dos destaques é o Project Move 1524, que utiliza a dança como terapia para conscientizar comunidades sobre HIV/AIDS, violência doméstica e abuso de drogas. Para Mamela, "arte cura e abre possibilidades inimagináveis".
Mamela Nyamza é uma mulher africana que transforma suas experiências pessoais em poderosas obras de arte. Sua coragem e autenticidade nos lembram que a arte pode ser uma ferramenta para mudança, cura, narrativas históricas em primeira pessoa e conexão.
Fonte: https://mamelasartisticmovement.co.za/about-copy/
🔦 Lanterna da Foca:
Livros utilizados como referências nessa semana, indico muito a leitura:
🔸 O Complexo de Cassandra: Histeria, Descrédito e o Resgate da Intuição Feminina no Mundo Moderno por Laurie Layton Schapira
🔸 Recordações da minha inexistência: Memórias por Rebecca Solnit
Curso citado:
🔸 Vulneráveis Venceremos por @manuelacantuaria
🎯 Mirar a flecha ! Descontos
Sessão de cupons que tem como objetivo primeiro gerar renda e sustentabilidade financeira para o SOA:
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dezembro
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fevereiro
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