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Se Organiza, Artista! Podcast
#SOA_025 | atropelamento
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#SOA_025 | atropelamento

há quantos autoatropelamentos sobrevivemos?
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Tenho uma história que seria trágica se não fosse engraçada.

O ano era 2006, noite de calor, calouros felizes reunidos no boteco do Baixinho no fundão (campus da UFRJ). Uma jovem de 18 anos, recém-estreando sua carteira de motorista, tinha seu Fiat Uno estacionado na porta do bar, onde estava bebendo com os amigos após a aula. Aí, ela pediu a um amigo, que tinha um fusquinha, para dirigir o carro dele.

"Ahhh, nunca dirigi um Fusca! Deixa, deixa!"

A animada motorista, com sua recém-conquistada carta de condução, achou que ia completar um álbum de figurinhas de carros diferentes já dirigidos. Que ideia brilhante! Que aventura! Pois bem, ele emprestou e foi no banco do carona com ela. Deram a voltinha na pracinha e, na hora de voltar ao bar, ela disse:

"Vou estacionar ele atrás do meu."

Ele: "Ok."

Fui indo, indo... e "não tô conseguindo frear! Não tô conseguindoooo... PUM TI PUM!"

Eis assim a história da menina que bateu no próprio carro. Teve que pagar o dela, o do amigo e quase atropelou outro que estava encostado na Uno, gritando, incrédulo: "Não, não, ela não vai bater no próprio carro!". Sorte que um ser iluminado puxou ele. E bem... essa menina sou eu. Tive que aprender também, nessa noite, a entrar com a Uno de ré na garagem da mamãe, achando que ela não ia ver o carro novo todo amassado.

O que mudou? Opa... Acredito que sigo fazendo isso, agora com rotas até mais perigosas: com minha rede de trabalho, afeto, amigos, companheiros. Quando acaba a capacidade de batermos em nós mesmas? Não era para a gente ser considerada madura em algum momento?

Artista: Gê Viana - Série Atualização Traumáticas Abril de 2022 .Radiola de promessa 2024 colagem digital. Fonte aqui.

Quando acaba a capacidade de batermos em nós mesmas?

Toda vez que quero começar a escrever, geralmente me inspiro ouvindo outras pessoas falando. Como disse, o podcast, para mim, é um gatilho: ouvir para escrever. E agora, estava ouvindo duas mulheres conversando, e uma delas comentou sobre "essa questão de Vênus em Peixes". Eu adoraria saber mais sobre astrologia para começar esta carta dizendo: "Gente, graças à minha Vênus em Peixes, sou capaz de bater no meu próprio carro e no carro dos outros – essa semana foi muito sensível e caótica, e eu repeti a façanha. Agora, peguei outro carro para bater no meu próprio..." Porém, não foi exatamente assim. Não tenho, infelizmente, essas ferramentas ainda estudadas para elaborar melhor algumas das minhas vulnerabilidades por esse viés.

Essa semana foi sensível, foi caótica, mas, inesperadamente, o saldo foi positivo: minha ideia de projeto evoluiu porque se tornou mais real – menos ilusão, mais realidade. E sair do drama não foi mais opcional. O tempo curto faz isso: ou você faz, ou faz.

O problema de ser produtora e escrever projetos para os outros é lidar com muito feedback, relatórios e, no final, ter uma ideia mínima do que tem capacidade de ganhar ou não. Quando se está escrevendo o próprio projeto ou quando alguém te contrata, começa-se a perceber que talvez aquilo não tenha chance. Foi o que aconteceu quando fiz minha consultoria na Loja Lisboa e ouvi outra produtora falando exatamente o que eu diria para mim mesma, mas com muito mais experiência. Foi aí que veio o alívio de: ufa! É isso, eu sei: meu projeto em si não se encaixa nos domínios previstos no edital. Se eu quiser aplicar, as razões precisam ser além do banal.

Foi ótimo. A consultoria foi muito boa. Que bom e alívio esse serviço ser gratuíto e público! Eu amo fazer e receber consultorias. Gosto de consultorias em equipe, mas, às vezes, precisamos de um cantinho só para nós, para alguém escutar com atenção. E foi bom escutar o que minha própria cabeça, sentimentos e experiência já sabiam: meu projeto não estava formatado para aquele edital e eu estava, há dias, enlouquecendo, inventando um projeto de criação artística novo.

Antes da consultoria, escrevi um projeto "vomitado" em meio a um turbilhão, pensei na equipe que poderia trabalhar comigo e fui compartilhando, entrando, como disse, no erro de fazer o que me pedem para não fazer: "o cuspi sempre cai na testa". Pelo WhatsApp das humanas, fui loucamente compartilhando a ideia com amigas, colegas e pessoas que admiro. Mas a ideia era só isso: uma ideia. Ainda não estava pronta, e, mais do que isso, eu mesma não estava certa dela – ainda mais para esse edital. No entanto, ao invés de guardar para amadurecer, saí disparando áudios em diversos telefones.

Os retornos variaram: desde "cê tá louca" até "vai lá, bota meu nome, mas não entendi muito bem o que cê quer fazer". O pior não foram as respostas. Foi perceber que nem eu sabia o que queria fazer. Eu não queria fazer, não era para eu estar fazendo. Fui andando para o trabalho por 5 km – 5 km de áudios para 7 profissionais das artes. A ideia não estava clara na minha cabeça, nem no papel, nem nos áudios. Nem o ChatGPT ajudou, logo nenhum universo existia. Pedi ideias lamentando a IA para adaptar ao edital e odiei tudo o que ele escreveu. No entanto, fica uma dica: jogar o regulamento do edital dentro do ChatGPT e pedir para ele analisar o que está faltando pode ser muito útil. Ele é bom para apontar lacunas, sugerir como tornar o projeto mais acessível e identificar ajustes necessários. E agora tem o DeepSeek para checar o ChatGPT – hahaha, viva as ferramentas! Todas falíveis, como a nossa própria cabeça.

Artista: Gê Viana - Série Atualização Traumáticas Abril de 2022 .Radiola de promessa 2024 colagem digital. Fonte aqui.

Voltando ao "vômito" de áudios: eu literalmente sabia que era ruim. Reclamei muito de ter recebido isso na última semana, mas FUI LÁ E FIZ. Se isso não é bater no próprio carro de novo e de novo e de novo, o que mais seria? Foi ruim porque escutei o que já estava sentindo nos feedbacks, mas machucou igual, porque a ferida estava dilacerada, enorme. A ferida que eu mesma abri de não acreditar que… caceta… calma.

Mas bem, sexta-feira encerrou a semana de forma diferente, porque teve, de fato, uma pessoa completamente desconhecida – 100% profissional – ali, parada com hora marcada, disposta a me ouvir e tentar encaixar minha ideia dentro dos limites e dinâmicas deste edital. Foi produtivo, deu alívio. Foi um "foda-se" tão bom saber que não, não se encaixa exatamente o projeto de produtor no edital de "artista". O mundo das artes e as políticas públicas ainda não estão tão bem preparados para os produtores que criam como eu, mas esses retornos me mostraram que eu não estava pronta para receber feedback das colegas de trabalho, parceiras, para as quais eu fui disparando mensagens pedindo ajuda. Mais do que pedir participação no projeto, estava clamando pelo impossível: "me salvem da lama", mas uma lama que só existia na minha expectativa infantil.

Quando um projeto não está pronto, nós também não estamos prontos para ouvir sobre ele, porque ficamos reativas demais, em vez de aliviadas. Uma coisa é não gostarem do seu projeto, mas você, sim, amá-lo, cuidar dele e ir lá e fazer. O SOA foi assim. A primeira amiga com quem compartilhei me fez tantas perguntas de "por quê?" e "para quê?" que eu gritei: "isso, porra, só porque eu quero!" E fiz, nasceu, e estamos aqui. E é termômetro isso? Eu fiquei envergonhada, acuada, triste e, pior, arrependida! Tentamos justificar porque os outros não gostaram da nossa ideia, quando, na verdade, ela simplesmente não estava madura. Foi configurada para uma resposta dentro de um processo de liquidificador: eu joguei tudo o que queria de referência e parei uma ideia só para o edital! TÃO ERRADO, JESUS! E sim: ERRADO! Essa coisa de "tudo é aprendizagem", ok – sim, vai lá – mas é errado mesmo. Melhor tentar lembrar de não fazer – você lembra como começou a história do autoatropelamento? A menina sem experiência na porta de um bar?

Artista: Gê Viana - Série Atualização Traumáticas Abril de 2022 - Radiola de promessa 2024 colagem digital. Fonte aqui.

Já estive do outro lado, ouvindo amigas contarem ideias para editais. Algumas eram boas ideias, mas péssimas para aquele edital específico. E, assim como eu não queria ouvir, muitas delas também não queriam e também foi péssimo. Passei por isso agora, e o melhor áudio foi: "Chaizinha, que diferente ouvir você como criadora, tão frágil hahaha."

Bom, como disse: meu projeto não estava formatado para aquele edital, e fiquei aliviada. Agora, posso escrever um projeto sem a pressão de ganhar. Claro que quero ganhar, mas minha intenção principal, nesta primeira submissão, é receber o feedback da banca. Então, desculpem as que eu invadi com áudios – vou escrever o Se Organiza, Artista, mas como seu estado bruto mesmo. O que queremos construir por aqui, e vejamos como nos analisam, sem buscar adaptações tão bruscas. (Parênteses: parceiros de última hora... Se você nos lê e quer pensar em parcerias e apoios! BORA conversar, o SOA precisa se manter sustentável, meu POVO!)


O Peso do Overdelivery e a Exaustão Criativa

O que percebi foi que as coisas foram piorando com a sequência do meu inconsciente, com sonhos alucinantes – meu corpo, minha pele, agora mais sensíveis, especialmente porque estou com a bunda coçando numa segunda-feira, sentada numa cadeira dura de madeira por 17 horas seguidas. Eu internalizei um desespero de perder as pessoas, que acabou se estendendo para o trabalho. Alguma garantia, por favor? Quando me livrei desse desespero no campo dos relacionamentos – finalmente, não os tendo (insira o emoji de palhaça aqui) –, meu trabalho passou a ser o único campo de autoestima elevada no mundo do cinema. Eu era grossa, sim, mas chamava isso de autoconfiança. Também tinha muitas qualidades, mas gentileza, de fato, nunca foi o meu forte.

Mas com o cinema e suas horas que nunca acabam, eu direcionei minha paixão para o trabalho – pelo menos ele dá dinheiro... mentira. Foi aí que me tornei a pessoa do excesso de entrega. Hoje, fujo disso (também) por isso e tento ser MENAS. Mas, às vezes, o monstro volta, e o monstro pede: "Por favor, me acolha, mesmo eu sendo louca." E não, não me acolham na loucura. Quando seus parceiros te dão limite e contorno, dói muito. Machuca. Mas a melhor parceria é a que nasce daí, de adultos, de profissionais, do mundo real. Eu estou pronta para respirar, sossegar essa bunda quadrada de pele irritada e ir jantar com essas humanas que, antes de tudo, são fontes de inspiração. A melhor parceria, eu realmente acredito, é aquela que te dá contorno e limite, mesmo quando dói – e dói, hein.

Bater no próprio carro é uma metáfora perfeita que venho usando desde o primeiro carro, para quando sabotamos nossos próprios projetos.

Durante anos, o trabalho nas artes – ser freelancer – era sobre fazer mais, entregar mais. Hoje, li numa newsletter que chegou por serendipidade no meu e-mail, da Yna Marson, chamada Desejante. Prazer, não a conhecia e que ótima é:

“mas como um vírus em busca de outro hospedeiro, quando me livrei dele no campo dos relacionamentos, ele encontrou abrigo no meu trabalho. foi aí que eu me tornei a pessoa do overdelivery — ou excesso de entrega.
fazer mais, entregar mais, postar mais, responder uma simples DM em áudios longos ou textões pra pessoa se sentir bem, colocar mil bônus e materiais dentro de um curso para “gerar valor” — o que na verdade quer dizer: para justificar o preço dele que eu mesma não me sinto confortável em cobrar e tenho medo que as pessoas achem caro e não comprem, então vou dar muitas coisas pra elas ficarem felizes e perceberem que vale a pena e que eu sou legal.
o resultado, você sabe: exaustão e uma sensação eterna de desvalorização.” leia aqui completa
Artista: Gê Viana - Série Atualização Traumáticas Abril de 2022. Radiola de promessa 2024 colagem digital. Fonte aqui.

E Agora?

Bom, sendo muito honesta, quero também saber o que eles pensam sobre uma brasileira falando de edital de cultura em Portugal. Quero entender se é cabível, se vale a pena ajustar para o formato deles ou se devo seguir outro caminho na busca de financiamento. Ser produtora buscando edital para artistas é complicado. Entre delírio e realidade, um projeto precisa de chão para existir – e o meu chão sempre foi o outro. Feliz? Infelizmente?

Meu projeto ajuda artistas, mas não me consideram artista também. E sim, tem gente nas DMs do Instagram da página do SOA pedindo para eu falar menos em "brasileiro", porque é uma página sobre cultura em Portugal. Mas surpresa! Caso alguém não tenha percebido: eu sou brasileira, e essa rede não é só sobre Portugal, são países lusófonos. Começa por onde estou hoje, mas vamos expandir essa CPLP e PALOP amada. E são muito poucos os xenófobos, logo, sem raivas (só hoje) por aqui. Eles ainda não chegam perto da minha capacidade de me autoatropelar – não são nem bicicleta perto do meu atual caminhão de desejos que, 20 anos depois, dirijo cheia de mim. Hoje, eu termino a semana chalalá paz e amor, cheia de esperança na rede que me acolhe, até quando me dizem: "Calma aí, querida, você tá delirando?"

Porém, se é para sofrermos atropelamentos, que sejam sempre os dos nossos sinceros e viscerais desejos.💜

Com carinho e energia,
Chaiana Furtado
#FocaNaLuz ✨

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Obra que dialogou com a carta da semana foi da artista incrível Gê Viana (Santa Luzia, Maranhão, 1986). Fotógrafa e artista visual, nascida no povoado Centro do Dete, bairro de Santa Luzia, cidade a 300 km de São Luís.

“Ouvi uma vez que, pra se achar, era preciso saber o local de nascimento de seus entes mais velhos. É bem difícil você montar sua história quando sua bisavó já não tá mais entre os outros… José Vitorino Ferreira Viana, o pai Zeca, e minha bisavó Torcata Francisca Viana, a mãe negra. Ambos nasceram na beira do Rio Parnaíba, na cidade de Buriti. Ao lado está a cidade Brejo, estamos no Maranhão, nesse território existiram os Anapurus, um povo denominado originalmente como Muypurás.” (Viana, 2020) fonte aqui

Na série que não publicamos aqui, mas deixamos de referência “Atualizações Traumáticas de Debret”, Gê Viana repensa o cotidiano das grandes metrópoles, guetos e povos tradicionais, indicamos assistir:


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