Como combater o mecanismo dos "nãos" do mercado da arte, que parece destinado a nos deprimir? Nesta semana, a exploração é pelos paralelos entre rejeição e resiliência, arte e resistência, sofrimento e alegria.
Editais e a falta de feedback: horizonte de mudanças
Uma das primeiras questões que ecoaram na escrita desta semana foi: por que processos seletivos que não oferecem feedback real são tão comuns? Apenas ouvir "apesar da qualidade do seu projeto, ele não foi contemplado nesta edição" é devastador. Não apenas para quem recebe a resposta, mas para toda a cadeia produtiva. Isso prejudica criadores e avaliadores, pois ambos investem estudo, tempo, energia, dinheiro e uma carga emocional estratégica em cada proposta.
Editais e fundos abertos precisam tanto dos nossos projetos quanto nós deles. Não é apenas uma questão financeira. É sobre reconhecimento, continuidade e o peso simbólico do selo, da parceria, da co-produção associada aos nossos trabalhos. Especialmente em residências artísticas, onde oferecemos não só criatividade, mas vulnerabilidade. O mínimo seria um retorno honesto, que nos permita crescer.
Essa prática, ou melhor, a ausência dela, revela uma cadeia insustentável. Precisamos de regulamentos que valorizem tanto o fazer artístico quanto o aprendizado mútuo. Isso permitiria não só melhorias, mas também a construção de boas práticas em uma cadeia produtiva mais sustentável.
Profissionalismo em rede
Só nesses dias me deparei com três temas de atravessamento complexo sobre o que seriam práticas comuns versus as boas práticas:
A falta de feedback em editais e fundos.
Chamadas etaristas que associam “primeiras exposições” ou “primeiros livros” à idade. (Por que impor esse limite? Quem está “pronto” aos 30 anos?)
A ausência de condições justas de trabalho, desde salários dignos até compromissos claros em vagas de recrutamento.
O quanto você, como criativo, já desanimou sendo massacrado por burocracias e processos que, ao invés de te instigar a criar, parecem te pressionar a desistir?
Essa semana, senti isso na pele, mais uma vez. Nem a primeira, nem a última. Após dedicação a um projeto artístico, minha parceira e eu chegamos à última etapa de uma seleção. Fomos à entrevista radiantes, preparadas, confiantes. Acreditávamos no projeto, no desejo, na nossa jornada diante do que estamos gerindo e gestando. Contradizendo nossas expectativas (e que ótimo que as tínhamos), estávamos confiantes, mas não fomos escolhidas.
Sem um feedback construtivo, ficamos com a pergunta: por quê?
Editais, públicos ou privados, precisam oferecer critérios claros e devolutivas que possibilitem aprendizado. E por que não o fazem?
Voltamos ao ciclo contínuo de reconstrução em espiral: outras parcerias, fundos, caminhos, é sempre sobre encontrar meios de seguir(mos).
Crescer e (re)sonhar
Não quero romantizar as rejeições. Não se trata de positividade tóxica. Mas os "nãos" precisam ter um propósito. Rejeição não precisa ser destrutiva. Há de se lembrar que deu muito trabalho correr atrás daquele não. E não me venha com o papo de "o não eu já tenho", só diz isso com sorriso de leveza de positividade quem nunca de fato foi atrás do seu próprio não.
Eu só tive o não depois de escrever o projeto, passar na entrevista e receber o não. Eles devem nos libertar daquele edital, não dos nossos projetos.
Porque um projeto não é fast food. Ele não muda a cada resposta negativa que recebemos ou opinião que nos cruza. Um projeto não é descartável; ele exige que sejamos grandiosas enquanto artistas, que tenhamos pernas fortes na maratona para sustentar a magnitude de nossos desejos com perseverança e fluidez. Não é corrida de tiro curto, logo, exige fôlego.
Escrevi projetos que chegaram às fases finais, mas não ao resultado desejado. Outros ainda estão em andamento. Algumas criações nasceram e conquistaram seus financiamentos. Com cada experiência, valorizo ainda mais minhas contradições. Afinal, estamos há 15 semanas aqui, falando sobre acreditar, seguir em frente e transformar medos em motor criativo. Se eu não estivesse vivendo isso na carne, como escreveria sobre?
"Querer o querer" tem um peso físico. Entre os nãos e os sins, quem sustenta nossas pernas quando elas tremem? Um ano de experimentos, "nãos" e "sins" — tento fechar o balancete, mas ele não chega a uma conclusão esclarecedora dentro de mim. Uma amiga acaba de me lembrar: “Nossa trajetória está sempre mudando. As coisas não estão escritas na pedra. A gente pode só dar um laço no cadarço, sabe? Não precisa ser um nó.”
Graças às boas amigas, artistas e conselheiras que me cercam, sigo sustentada em recordar da alegria como potência, mesmo banhada em contradições.
Paralelos da vida criativa
Mais uma vez me encontro diante de novos paralelos, um prato cheio de "drama" e da possibilidade de escolha e privilégios. Entrei de cabeça em processos seletivos para vagas de emprego que podem mudar minha trajetória. Por que me inscrevi? Medo do desemprego? Da instabilidade de empreender? Estou em busca da tal "segurança"? Jogo de ego de saber que posso ser "selecionada" e, no meio dos "nãos", aparecer um "sim"?
Já não me engano entre entrevistas, editais e suas respostas — são linhas paralelas que me apoio e usufruo de acordo com a necessidade de existência. De um lado parece ser: um possível futuro com estabilidade financeira, novas conexões e projetos diferentes. Do outro: tudo o que lutamos para erguer nos últimos meses e anos, ainda tão delicado. Paralelos que não são impossíveis de manter — só não os mantém quem é rico ou herdeiro.
Para muitos de nós, só é possível criar e gerir projetos artísticos pessoais enquanto trabalhamos em empregos fixos. Então, é sobre privilégios de acesso que esse mercado nos enclausura.
Admiro quem consegue equilibrar essas pressões. Até agora, sempre me desvalorizei para atender às necessidades dos outros. A transição que busco não é sobre deixar de "trabalhar para os outros" e dedicar meu tempo e energia àquilo que acredito — mas é sobre construir um modelo criativo que sustente não só a mim, mas uma rede colaborativa de artistas. Aprender a "se" valorizar é tão importante quanto valorizar o trabalho que você dedica ao outro. Esse sonho está no coração do Se Organiza, Artista!, um espaço onde ideias e práticas se encontram e se transformam - mas sustentá-lo aqui é um dos paralelos.
Assim, os paralelos não são apenas uma questão de privilégio, dinheiro ou tempo. Eles também carregam uma angústia profunda. Refleti sobre valorizar os "nãos" que eu conquistei ouvir — agora preciso ainda pensar sobre valorizar os "nãos" que eu preciso falar.
Como sustentar a criação e o coletivo em um sistema que insiste em nos ensinar a ignorar nosso valor? Como dizer "não" para os amigos, família, antigos parceiros e colocar limites claros em si e no outro? Lembre-se que são eles nossos primeiros apoiadores. Também são eles os primeiros a quem vamos ter que aprender a sustentar o nosso "não", o nosso limite, o nosso desejo. Como começar a dizer "não" para os amigos e falar: é assim que ganho dinheiro, não posso mais te indicar livros, cursos, editais de graça, chega a faltar ar só de pensar.
Já percebi que oferecer dicas e consultorias gratuitamente não é sustentável, porque é assim que construo parte da minha renda e sustento todo esse castelo de cartas ainda frágeis por aqui. Fico dias aqui escrevendo, horas e horas pesquisando, estudando. Reconhecer o valor do meu trabalho é parte da solução. Como? É um equilíbrio delicado e, muitas vezes, doloroso. E eu, sinceramente, ainda não sei, mas ao menos já escrevi e tô aqui debatendo e expondo um pouco mais sobre isso.
A coragem de continuar, a ousadia de recomeçar
Vivo intensamente os conflitos, que sinto que alguns menosprezam e, muitas vezes, são reduzidos a "dramas", como: "ela é dramática, sempre foi assim" ou "ela é ariana demais". Isso me entristece profundamente. Estereótipos e conclusões sobre mim e meus processos que não condizem com a realidade — não sei se é útil avaliarmos nossos parceiros de trabalho através desse prisma do "vai ser sempre assim". Fico me perguntando secretamente: não percebem o quanto já mudei, o quanto quero mudar, o quanto sigo atenta à mudança? Conflito é sinônimo de encarar a dor, e digo o mesmo sobre nossos projetos.
Carrego e expresso aqui semanalmente, publicamente, essa dualidade: minha dor também é a fonte dos meus projetos, das minhas escritas, dos meus estudos e reflexões. É assim que direciono minha flecha, onde o magnetismo aponta a bússola e dissolve a dúvida. Eu acredito na dor que não erra, que não te engana. Quando você não consegue dormir, o corpo te arrebenta, o peito parece sangrar — ali está a ponta da flecha. Fugir disso é o quê? Opcional?
Na matemática, as linhas paralelas se encontram no infinito. Na vida criativa, talvez seja o mesmo. Podemos existir entre a coragem de continuar e a ousadia de recomeçar. Não importa o sofrimento: ele nos leva até o fundo. Podemos pegar a corda da alegria e (re)sonhar. Podemos acreditar na alegria como uma forma de escapar ao controle social. O samba que fez seu aniversário ontem nasceu por isso e para isso. Resistência e alegria na dor.
Encontrando os paralelos
Como encontrar coragem e alegria, mesmo em situações onde o "não" é certo e o "sim" não parece chegar? E, quando o "sim" chega, não temos nada além de mais dúvidas, limitações e angústias? Que maravilha é viver.
Alegria não é o oposto da dor, mas o que nos permite resistir a ela. Na arte que nos propomos a fazer, é onde encontramos força para recomeçar.
Escutando o podcast Senta Direto, Garota dessa semana, com Viviane Mosé, ouvi ela dizendo:
"A sua dor é o que você tem de melhor. Uma pessoa madura é alguém que sabe lidar com suas frustrações. Você pode ter 90 anos; amadurecer não depende da idade, mas de saber lidar com as suas frustrações. Gênio é quem ganha dinheiro com elas. Nesse sentido, eu sou gênio, porque vendo minha dor. Ela está no meu poema, na minha filosofia. Isso que eu queria ensinar: não fuja das suas dores, não tenha medo. Elas são o seu talento."
Ela reflete que o caminho da vida é com arte. Arte alegra, compensa: natureza, música, potência. Mas tanta potência e tanta alegria servem para sustentar o sofrimento. O sofrimento vem e parece que o mundo acabou. Você urra de dor e, quando passa, você sai. O sofrimento é tão grande que você não fica nele. Vai até o fundo.
Estava lendo esse livro, que sempre estou "lendo", não quero acabar de ler. E fiquei com esse paralelo na cabeça:
"Era como se eu tivesse uma escolha entre ser destemida e poderosa, ou então ser eu mesma, e não tivesse nenhum mapa para ver onde essas duas coisas poderiam se cruzar. Pareciam linhas paralelas que seguiram lado a lado para todo o sempre."

"Você é o mar quando entra nele." — conceito que Viviane aborda citando Nietzsche, que me leva à reconfirmação constante de que arte é resistência. Alegria é revolução.
A carta dessa semana nasceu desses cruzamentos — das minhas vozes complexas somadas a essas leituras e escutas.
Se embriagar com um copo de água
Pensamento polarizado não leva à resolução nem à ampliação. Levantar perspectivas em paralelo, pode ser diferente. Se as linhas paralelas podem se encontrar no infinito então, o caminhar junto em busca disso tem que ser possível. Eu acredito que, se resgatarmos os principais paralelos estratégicos, podemos unir força, alegria e dor.
A cura está no agora. O tempo e o dinheiro que sustentam a criação estão no presente. É um desafio imenso, mas acredito que nos cruzamentos entre arte, resistência e alegria, encontramos nossa força. E talvez, como as linhas paralelas, alcancemos outros infinitos — aqueles que parecem, hoje, impossíveis.
🏹 #SeInspiraArtista
Nesta semana, quem esteve aqui em diálogo na foi a artista Mónica de Miranda. Convidamos você a mergulhar em seu trabalho. A artista portuguesa venceu o Prémio idealista de Arte Contemporânea 2023, com a obra "South Circular".
“O meu trabalho surgiu sempre desses lugares que ocupo, dos lugares a que pertenço e das relações pessoais e coletivas com a minha própria cultura e a minha noção de pertença, que não é fixa. É uma ambivalência de espaço, lugar, de forma de estar, de forma de pensar, de histórias, de vivências. E carregamos vários mundos. Isso é uma das reflexões fundamentais da minha obra artística. No início da carreira foi um lugar de pesquisa e de reflexão, onde eu própria entrava nas obras. Neste momento há uma extensão desse lugar pessoal para um lugar mais comum, mais coletivo, sempre com uma relação ao meu universo, porque apenas conseguimos contar a história a partir do nosso lugar. A partir das memórias construo a narrativa do meu trabalho. A origem do trabalho é nesse lugar, [nasce] dessa geografia dos afetos, dessa relação com os outros a partir de um lugar próprio. “
Fonte: Mónica de Miranda: "Há uma outra Lisboa que está escondida"
🔦 Lanterna da Foca:
Materiais utilizados como referências nessa semana:
podcast: Um sim à vida, com Viviane Mosé
livro: Meu braço esquerdo: Um sim à vida de Viviane Mosé
livro: Recordações da minha inexistência: Memórias por Rebecca Solnit
reportagem: “Fantasmas do Passado: A artista Mónica de Miranda mergulha na história colonial de Portugal” da Euronews
Todos os links dos livros que indicamos, com comentários sobre a leitura e observações, podem ser acessados aqui no Pinterest e também no perfil pessoal do Instagram nos destaques de link de livros.
☎️ Chamadas abertas em destaque - Portugal💥
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