"Tudo que fica entre o mar e a areia."
Ouço essa frase1 enquanto escrevo aqui e tento criar um novo ritual de concentração: ouvir vozes. Ouço vozes o dia todo e, como disse semana passada, parei de lutar contra; incorporo essas vozes em mim. Antes, eu era fã de acordar e ligar o rádio; hoje, dou play no podcast sem nem escolher o que vou ouvir. Deixo ir. E aí, uma frase como essa puxa o anzol da isca que meu cérebro jogou no mar das palavras que deixo voarem em volta de mim, atenta ao cheiro que a maresia levanta do sentimento que sai em forma de palavra. Respiro esse ar úmido – que conecta no estalo: o caminho do ritual, o ano novo, o entre.
O momento em que respiro fundo agora e lá estou – vinculada entre o que um dia já foi, ainda é e o que virá. Levanto a beira da minha saia com medo de molhar na orla das águas que dançam no vai-e-vem das redes que penduro em casa. Seguro forte as flores, penso, agradeço e entrego. Olho para o lado e sorrio – o coletivo está ali. Minha flor não está sozinha naquela imensidão.
Tem muito ar em movimento entre o mar e a areia: é a brisa, a espuma, é a erosão, é o vendaval – “cambia, todo cambia”.
É nesse "entre" que os rituais existem.
No pedir ajuda para pular as 7 ondinhas. Na pressa de estar no alto e pensar: 'PERDI A ONDA! Não pedi nada! SAÚDE! Saúde!' No comprar os ingredientes da ceia, em pensar em quem vai jantar, o que a pessoa come, cortar 2 kg de cebola, limpar a casa, comprar flores. 'E o ano novo? O que vai fazer?' Escolher a palma branca mais bonita ali nos baldes das encruzilhadas ao caminho do entre - pensar na roupa nova da cor do que se vai atrair. 'Não pode comer animal que cisca para trás!' Mentalizar.
Imersa nos ritos de passagem, onde o dia 31 de dezembro começava na Havaiana nova e na blusinha branca que ganhávamos todo Natal, para passar o ano novo pisando em areia. A agenda nova que tia Lúcia nos dava – para completar o kit de futuro. Olho o passado hoje com alegria. Folhas em branco e pé firme no novo – para o caminho do "entre" existir. O cheiro da agenda nova que corria para escrever 'aniversários importantes' – canetas coloridas no 'dia das pessoas'. Celebrar o que virá.
As fotos, as blusinhas, os chinelos, as agendas, o passado gravado e documentado se acumulam do outro lado do oceano. São minha âncora, meu ponto de referência, para saber onde posso voltar em caso de emergência.
Ritual do tempo
Ter para onde voltar quando se rompem coisas é a ilusão que os rituais também podem carregam. Na beira do mar, há horizonte. No livro As Pequenas Chances, de Natalia Timerman, ela narra como descobrir o ritual de seus antepassados judeus a ajudaram a atravessar o luto pela morte de seu pai. A importância da construção cultural dos que viveram aquilo antes de você – a não solidão nos momentos de descobertas e travessias.
Quando meu pai morreu, o ritual que me apresentaram foi o velório, o enterro e depois? Era para fazer o quê? Eu... Me afundei em Clarice Lispector, que tinha ganhado meu primeiro livro dela, duas semanas antes – chamado Um Sopro de Vida. E nasceu o meu ritual de luto. A palavra como tábua de salvação. Toda vez que vou me despedir de algo importante que está comigo, agarro esse livro – essas páginas – a dedicatória da Cla e da Babi que ali estão. A hora de partir ganhou literatura. Os sentimentos de dor profunda ganharam o que eu descobri depois ser serendipidade.
“Meu mundo é hoje”
Eu gosto da ideia de marcar ritmos. Colocar datas em anotações. Celebrar o tempo – segurar memórias. Nós inventamos ritmos descontínuos. Todos os dias são iguais, mas, aleatoriamente, damos nome aos tempos – e sentimos.
O dia que tem nome de domingo, na poesia cotidiana, passa a ser um sentimento. E assim, o 1º dia da semana, com as mesmas 24 horas dos outros dias ritmados, carrega uma nostalgia, junto com as ruas calmas e o sentimento de acolhimento que buscamos: descanso, recomeço, ansiedades.
Domingo também é tentativas é o fim e começo – é o nosso eterno 31 de dezembro. Há quem odeie, há quem ame o ritual imposto em dias como esses. Dias com nomes – um apanhado de tempos que nos misturam e embaralham.
Mesmo sendo arbitrário – como sou do time que celebra, chora, sente – amo datas. Somos livres para redescobrir o nosso sentido de pertencimento à vida de forma mais coletiva nas celebrações globais. Há o lado de estarmos presos às convenções, mas é possível abrir a capacidade de instrumentalizarmos isso ao nosso valor.
Alice, em seu País das Maravilhas, descobriu que desaniversários também podem ser comemorados, que o coelho estava sempre atrasado – e que cair em buracos é também parte da magia de estar viva.
Ser artista – no hoje
“Não existe amanhã para mim.”
A troca, a leitura, a criação, a escuta e o diálogo interno que proponho aqui são uma invenção louca, como se pudéssemos existir apenas como artistas, um pouco descolados da realidade. Minhas amigas me lembraram esta semana: não se pode. Meu companheiro me lembra: não se pode.
Não se pode criar – ser – existir fora da realidade. É perigoso, e um dia isso te pega de assalto e te destrói.
Há de ser atento, forte, e conservar o medo que te protege da miséria. Mas sem esquecer de ter coragem, esperança e seguir sonhando nas horas vagas. Criar apesar da realidade. Amar apesar das improbabilidades. Sonhar com o impossível e conservar a camada de proteção que sua consciência de classe te dá. A vida - como a dúvida constante - que carrega a certeza da morte, mas nos faz celebrar diariamente que podemos viver.
Trabalhar muito, mas não morrer de trabalhar. Sonhar alto, mas não tão alto. Saber que seu sentimento é único, mas não tão especial assim. Ter consciência de classe e, mesmo assim, acreditar que você pode pertencer a uma classe artística que não foi designada de berço para você. Como faz?
Querer construir um relacionamento amoroso sem nenhum exemplo concreto em que se respaldar. Seguir escutando as lamentações do hoje em dia: “Não dá, não, homem não presta!”Filho? Tá louca? Quem quer ter filho com tanta consciência do quão sacrificante e sofrido isso pode ser?” “Eu tive, mas não recomendo.” São muitos os alertas do coletivo que te cerca, que quer te proteger – mas também te exclui. Te faz pertencer e te sufoca. As injustiças das celebrações para quem não foi ensinado a comemorar as ausências. Os desprivilegiados querendo árvore de Natal aos 40º graus que fritam as parcelas do “já é Natal”.
E aí vêm os rituais – para mim eles são como uma bandeira branca, algo a se pendurar no balanço da pracinha – e o desejo de tirar os pés do chão, balançar, girar a gira, sentir o ar. Estar voando e no chão ao mesmo tempo. É um lençol branco voando nas ruas de Lisboa te lembra que naquela janela tem vida. Assim sabemos: ali não é um alojamento local. Ainda há morador. Pelo cheiro do sabão, pelo sol: é dia de ir para fora de nós.
Pode-se pedir e sonhar tudo no dia de hoje. Hoje é o recomeço. É a meia-noite. “Já é ano novo na Austrália!” E, ainda assim, nos tempos diferentes que cada país, cada conjunto marcará teu começo – ir trabalhar no mesmo emprego no dia 2 de janeiro.
Meu mergulho profundo no processo de fim de ano é agarrar a mão de quem construiu antes – mas não muito – para que seja possível sonhar “no mar da paixão e da loucura em busca de outras felicidades”. Ter as flores comigo, mas estar preparada para jogar a coisa mais bonita que se tem no mistério.
Criar imaginários
Não tem fórmula, mas tem caminhos já abertos e outros a serem inventados. É trilha – tem humano que gosta, outros de avião. Eu sou a positiva incurável que acredita na utopia de criar caminhando. Ver tucano na floresta amazônica – porque eu andava devagar. Eu crio – e quero seguir criando. Não vou sucumbir, por agora, a acreditar nos “ninguém consegue viver de arte” que tentam tirar minha força de existência, porque o oxigênio da criação é rarefeito. É tão alto que parece inalcançável, sabe-se?!
Estava revendo minha bio do SOA, e lá estava: projeto para criar imaginários. Acredito que saber sobre editais, oportunidades, residências, novos caminhos, novos horizontes, é parte do treino da maratona. Saber que o medo é remo, o barco geralmente que temos é uma canoa furada, mas tamém te faz treinar o nado. Trago aqui novos artistas para nos inspirarmos, porque, antes de tudo, eu preciso acreditar que é possível. O difícil sabemos todos, mas e os paralelos possíveis, onde estão?
É concebível expandir horizontes e imaginar carreiras artísticas em que tenhamos sucesso, à nossa maneira.
Quem diria para a Chaiana que ela chegaria ao dia 31 de dezembro de 2024, fazendo o que sempre amou: escrevendo, com quase 1.000 leitores semanais, um podcast, e falando para amigos que a escutam, mesmo cheia de contradições, imperfeições e ansiedades?
“Ali onde eu chorei qualquer um chorava”
Não dá para inventar outro calendário, mas dá para compartilhar rituais a sua significante própria – colocar teu pertencimento e valorizar sua comunidade. Hoje, jogar flores no mar, percebi, fazia muita falta, então eu hoje decidi parar de lamentar e ir ao mar. Ele estava mais perto do que a angústia fazia parecer. Vou me desvincular da celebração em coletivo para ir jogar as minhas flores no mar, mesmo que sozinha no presente – mas eu reinvento um novo ritual – que faz pertencer a outro coletivo. Honrar meus antepassados e as minhas crenças.
Ouvir as vozes que me rodeiam, dos fantasmas que me constituem – eu tô pronta internamente para revisitar a passeata de branco em Cabo Frio, a gritaria do começo da ordem da casa composta com os gritos de “quem vai tomar banho primeiro?” Acordar, ir à praia, almoçar, estar toda ardida, “cadê o hidratante?” – “Porra! Sai logo do banheiro!” Coloca a roupa branca, “não acredito que já sujei a roupa nova! Por isso não uso branco! Tira a foto? Tá aparecendo a marquinha?” Hiii, esqueci de lavar a calcinha nova” – amarelo! Claro! Dinheiro sempre!”
Recriar novos pertencimentos em cima de resignificados. Não é isso que a arte faz? Celebrar as ausências e as saudades – preencher. Deveria ser proibido ano novo no inverno – mas celebrar as diferenças – porque eu escolhi estar aqui. Eu escolhi ser imigrante – ser outro território de informações rodeada de estranhezas. Eu escolhi acreditar e ter fé.
Rituais carregam intenção, a forma e a disposição que você vai olhar para o mundo – é se comprometer a deixar algo para trás ou priorizar isso no futuro. Qual a desilusão você ainda quer que te pertença?
Desilusões em (re)começos
“Quando eu penso no futuro, não esqueço meu passado - desilusão, desilusão, danço eu, dança você na dança da solidão…”
O que não quero mais deixar para trás?
O que não quero mais negligenciar?
O que eu não quero mais negar?
Profecias autorrealizáveis
Ritualizar tem a força e a intenção de focar os nossos começos com o que gente quer a partir de agora. É um caminho que começou – o ponto da estrada – o mergulho no mar, espaço criado para boiar nos entres – ficar com a pança para cima - equilibrar o peso do nosso corpo no mar - e sentir água e céu. É tão bom boiar.
Acreditar não é um determinante – mas intencionar, desejar algo – você acaba estruturando as suas relações e organizando o seu trabalho com foco naquele algo que você acredita – as listas – as metas – queimar papel.
Porque você escolhe deixar no presente e no intencionar do estruturar o teu futuro algo que já te fez mal no passado? É essa força de esperança que teremos? Em redesenhar o futuro com base no que deu errado no passado? Eterno “murro em ponto de faca”? Ou é possível sonhar novos imaginários que as dores do passado possam ser enterradas? Porque é tão difícil deixar ir embora – saber que os sonhos morrem – nem todo projeto é realizável. O fim do ano carrega a consciência coletiva no que estamos construindo enquanto limitações.
Vivo a angústia de assistir meus amores presos em profecias que carregam mais dor que amor e pouquissima capacidade de reinvenção de imaginários possíveis. São tempos de sobrevivência e lidar com a realildade - ser responsável - ser adulta – e o que podemos escolher por nós diante do outro? Assim se mantém o sistema das castas culturais, dos relacionamentos hierárquicos - sufocadas pelos ódios de realidade.
Embora eu tenha me inscrito em um 10 km para correr em maio – antes de ser uma corredora – preciso passar pelo processo. A falsa esperança de chegar no fim sem estar preparada para aquilo – cada um carrega a sua ilusão de estimação. Porém, a oportunidade que janeiro nos apresenta é de ser o que se almeja – com responsabilidade – redesenhar as metas para que nos caibam – na nossa honestidade, com nosso autoconhecimento – permitir ser mudança. Se vou conseguir correr ou não, não sei - sei que um dia eu me imaginei chegando na linha de chegada- foi um sonho bom.
“Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
Dá a volta por cima”
Banho de folhas
Não lembro quando foi o meu primeiro. Acho que a primeira memória é da Dinda, rezadeira, parteira, madrinha da minha mãe. Que, em todo aniversário, ia lá em casa entregar sabonete como presente de aniversário e rezar por nós. Minha mãe é fruto dessa reza, e eu sou o fruto dessas mulheres. Dinda, pelo que sei, pariu seus filhos em casa, ajudou minha avó a ter os dela e era uma mulher pequenina que lembro de, quando criança, já ter a altura dela e parar no meio da farra para ganhar a reza dessa mulher abençoada, palavrinhas no ouvido, com magias, seu abraço, seu cheiro, seu vestidinho de camisola.
Minha mãe a respeitava e a amava tanto. Esse ritual de reza, de mulheres, de madrinhas pelo caminho, virou uma “surra de arruda” em Copacabana com minha Paula Horta, os banhos que preparei com e para amigos, a lavanda que plantei assim que cheguei nesta casa em Lisboa e onde vou, no canteiro, buscar a força de seguir.
Esse é o meu ritual de ano novo, que quero seguir – eu amo o banho de ervas. Me sentir abençoada pelo cheiro, pela presença disso no meu corpo.
Assim, refaço meu ritual: escolho cuidadosamente minhas roupas, preparar minhas ervas, comprar minhas flores – nada nos determina, mas é preciso atuar com o foco naquilo que se quer. Se um calendário novo é uma nova chance, vai depender de você. Mas é sobre “começo - meio - começo” como dizia Nego Bispo
“Eu e água”
Que as águas salgadas e cheirosas nos salvem, nos abençoem. Sigam os fluxos das correntezas, dos rios que não param nunca de correr, de todas as águas, dos choros, do mar, das chuvas, do suor, das salivas, temperadas com o sal grosso, dos sabores do churrasco, banho de sol, sal do teu mar que é possível hoje, com canequinha, balde, banheira. Fluindo em águas eu me entrego a esse dia – a esse projeto de: começo - meio - começo.
E uma gratidão enorme a quem, aqui, dedicando seus minutos semanais de pausa, troca e escuta. Aos amigos que vieram aumentar o engajamento semana passada. Com rezas fortes, os projetos novos sonhados, expelidos, sofridos e celebrados que trazem o esperançar de que amanhã, dia 1º de janeiro de 2025, um lindo dia vai nascer.
Feliz começos para você também.
Até ano que vem!
Com carinho e energia,
Chaiana Furtado 💜
Beijos de #FocanaLuz ✨
📍Músicas que citei no meio do texto:
Todo cambia - Mercedes Soza.
Volta por cima de Beth Carvalho na voz de Maria Bethânia
Coração Leviano - de Paulinho da Viola na voz e presença de Mariene de Castro (lindíssimo)
Dança da Solidão - Paulinho da Viola
Eu e água - Maria Bethânia
📍Podcasts que trouxeram as vozes:
Platitudes #21 | Ano Novo: fim de temporada
Vibes em análise | Saudades do Futuro (@floatvibes)
📍Livro que citei:
As pequenas chances da Natalia Timerman
Um Sopro de Vida da Clarice Lispector
📍As fotos:
Essa semana, todas as fotos são minhas – do meu arquivo pessoal – do meu 2 de fevereiro no Rio Vermelho – da realidade do sonho de viver o ritual do dia de Yemanjá – resgate.
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Frase escutada no último episódio do podcast Vibes em análise.
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